Sobre o antissemitismo:

Por Rafael Nogueira.

Neste sábado, trago o tema do antissemitismo, em colaboração com o esforço brasileiro de se aproximar de Israel. Trata-se da degradação de Dreyfus.

No 5 de janeiro de 1895, a França protagonizou um dos espetáculos mais comoventes da história da humilhação, e o primeiro capítulo do antissemitismo de Estado, que viria a dar frutos décadas depois com a criação do Partido Alemão dos Trabalhadores, que se tornaria o Partido Nacional-Socialista (Nazista), também no dia 5 de janeiro, mas de 1919, numa dessa coincidências esquisitas de que a história é farta.

O contexto é o da pós-guerra franco-prussiana. A França é humilhada pelos alemães. Dreyfus era oficial francês, era judeu, e sobre ele recaiu a acusação de levar informações militares secretas ao governo prussiano.

A prova era muito semelhante a que Otelo tinha da traição de Desdêmona: não um lenço no lugar errado, mas uma carta com letra parecida. Encontrada no lixo por uma faxineira, que a levou ao serviço de inteligência, a carta não tinha sequer assinatura.

Por meio de uma simulação de prova escrita para ascensão de carreira, o Exército colheu uma amostra da caligrafia de Dreyfus, e, de forma bem amadora, comparou com a da carta.

Imagino a sensação de esperteza do Xeroque Rolmes que concluiu a investigação: -- Pimba! Elementar! Olha esse efe aqui! E aquele A maiúsculo? Igualzinho! Só pode ser dele!

Não fazia sentido atribuir-lhe culpa porque a letra nem era tão parecida assim, e porque havia erros básicos de terminologia militar ligada à especialidade dele.

A população estava fácil de convencer. Um certo antissemitismo era regra entre os franceses, como explica Hannah Arendt em As Origens do Totalitarismo, obra na qual se vale do caso Dreyfus tanto explicar a história do movimento antissemita.

Fato curioso: Ruy Barbosa, exilado pelo então Presidente do Brasil Floriano Peixoto, estava em Londres, informou-se muito bem sobre o caso, e escreveu a respeito, publicando apenas 2 dias depois sua “Carta aberta: Uma voz contra a injustiça” num jornal brasileiro. Foi um dos primeiros a perceber e a escrever sobre o absurdo, pouco antes de Bernard Lazare, Anatole France e Émile Zola.

Trago aqui a descrição da chamada “Cerimônia de Degradação” (veja a imagem) do 5 de janeiro, escrita por Barbosa:

“Não me cabe descrever a cerimônia atroz da degradação militar, prelúdio feroz da expiação sobre-humana que se abriu ontem para o malfadado. Essa cruel solenidade horrorizou a Europa. Antes de se separar irremissivelmente da pátria, amaldiçoado pelos seus conterrâneos, para ir agonizar, sob o indelével ferrete, em remoto presídio penal, esse infeliz passou pelos tratos do mais tremendo suplício conhecido na história das torturas morais. O formidável espetáculo fora preparado com todos os requintes da encenação regulamentar. Quando o condenado entrou no quadrângulo da Escola Militar, as insígnias, que ainda lhe sobressaíam na farda, já não figuravam ali senão por artifício convencional, como outros tantos estigmas no peito e na fronte daquele homem. O alfaiate substituíra de véspera as costuras por alinhavos; o cuteleiro partira e ressoldara a espada, que no outro dia se devia quebrar publicamente diante das tropas. A lenta e implacável pragmática esgotou no flagelado o cálix das afrontas possíveis. Se entre elas não figura o esbofeteamento, dir-se-ia que não é senão para poupar à mão do executor o vilipêndio do contato com o rosto do réprobo. Desde o quepe até as listas vermelhas das calças, um a um lhe caíram aos pés, arrancados por um subalterno, os emblemas da dignidade militar. Ficaram-no envolvendo apenas os restos negros e rotos da farda, imagem do luto pela honra que acabava de despir. Nesse miserável extremo ainda lhe coube a penitência de transpor as filas do quadrado; e, entregue então à polícia civil, submetido, como os criminosos comuns, à medição antropológica, passou das mãos dos seus camaradas às dos gendarmes, para acabar os dias em Nova Caledônia, entre a escória dos criminosos, onde a família irá respirar com ele o ar dos galés.”

Dreyfus foi preso e passou quatro anos numa prisão próxima à costa da Guiana Francesa chamada “Ilha do Diabo”.

Depois de muita polêmica, sobretudo após a publicação do texto J’accuse, de Zola, o processo é anulado, Dreyfus é julgado e novamente considerado culpado, mas acaba anistiado. Só em 1906, com mais provas levantadas, Dreyfus é inocentado e reintegrado ao Exército Francês.

Ao fim e ao cabo, Zola é assassinado, Dreyfus sobrevive a um atentado, e um oficial prussiano que tinha um desses nomes germânicos cheios de consoantes, o Schwartzkoppen, reconheceu a inocência de Dreyfus, cujo irmão já havia descoberto o verdadeiro culpado, um tal de Esterhazy.

O caso nos traz mais uma prova de que liberdade de expressão é um valor civilizatório tremendo, garantia inegociável, ainda que alguns imbecis a usem para gritar Lula Livre, como se ele fosse um Dreyfus, e não um criminoso que a história ainda reconhecerá como alguém muito pior do que o homem do triprécs. E é importante também para vermos como um Judiciário corrompido faz estragos.

Na literatura, a história lembrou-me a do Conde de Montecristo, e Proust pressupõe que o leitor a conheça no seu Em Busca do Tempo Perdido.

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