Flávio Lindolfo Sobral |
No Brasil, contudo, há algo em sua cultura que cria diversos obstáculos, armadilhas e complicações que dificultam incrivelmente o acesso aos valores e saberes universais. Uns dirão que é por causa do gramscismo, já outros alegarão que é culpa do protestantismo rasteiro, enquanto outros acusarão a superficialidade tecnocrática positivista e ainda haverá gente apontando para a Igreja Católica, a Maçonaria e a TV. Só que cada um destes contribuiu decisivamente para nossa cultura e formação. Logo, não são agentes, e sim também pacientes. Historicamente, este mal já era assinalado ainda no século XIX. Se ele tem historicidade e se encontra em vários agentes culturais, é imensa a possibilidade dele ser um fenômeno separado que vai se camuflando. Como um câncer, ele adentra as fontes da nossa cultura, rebaixando-as a mera fábrica de ostentação erudita, de penduricalhos pomposos, de menosprezo e aversão olímpicas ao conhecimento. Em outras palavras, aqueles que possuem a obrigação de ofício, de cargo e de casta de zelar e perpetuar o patrimônio civilizatório são os primeiros a vilipendiá-lo.
Mas algo de pitoresco acontece no Brasil. O povão que deveria ser presa fácil dessa "barbarização dos civilizados" meio que blindou-se. É verdade que recebe e sente as pancadas, porém, consegue assimilá-las e fazer valer a força educadora da cultura popular. É um processo totalmente inverso ao que aconteceu com Roma, em que a elite ainda com senso de alta cultura acabou se transformando na Arca de Noé do legado greco-romano. Aqui, é a plebe supostamente inculta que mantêm um pouco do que resta de valor cultural do Brasil. Entre a religiosidade difusa, os valores sociais, o bom senso prático, o patriotismo, o folclore e o apego à família há ainda sementes daquela grande árvore verdejante da outrora alta cultura brasileira: época que uma Rachel de Queiroz fez uma tradução de segunda mão de Os Demônios de Dostoiévski que ficou tão boa e literária quanto a original, ou que um Villa-Lobos bebia na melodia caipira para criar uma impressionante homenagem a uns doas maiores compositores da música clássica, ou que um Gilberto Freyre elevou a ciência social brasileiro a um grau de pioneirismo, antecipando em décadas estudos revolucionários da vida privada, da alimentação, da ecologia social, do comportamento, das obras literárias, etc.
René Guénon dizia que o qualificativo popular não se refere ao objeto, mas a via que este se utilizava para manter-se e perpetuar-se. Assim sendo, a cultura popular hoje pode ser vista como repositório (e inspiração) do que restou da nossa alta cultura, cristalizada em fórmulas simbólicas transmissíveis. Se a cultura popular é a matriz da alta cultura, seria no mínimo sensato fincar nela os alicerces para qualquer empreitada cultural. A esquerda há tempos tenta fazer isto, mas de forma deletéria e tóxica, desconfigurando-a de tal modo para encaixar no seu traje ideológico. Se os conservadores querem entrar com tudo no combate cultural, é por aqui que eles deveriam começar, resgatando a originalidade da nossa cultura que não é nada mais que o espírito de nosso povo.
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