Lucília Coutinho |
Desde que o mundo é mundo, chove em São Paulo.
Quando os jesuítas aqui chegaram, logo atrás dos primeiros portugueses que subiram a Serra do Mar em busca de terra boa de plantio não existente no litoral, erigiram o Collegio num planalto protegido pela confluência de três rios: Anhangabaú e Itororó que desaguavam no maior, o Tamanduateí.
Os rios eram fronteiras naturais da nascente cidade dedicada a São Paulo. Com o tempo, o Anhangabaú morreu soterrado e virou Avenida Vinte e Três de Maio, o Itororó, com o mesmo destino, virou a Avenida Nove de Julho e o Tamanduateí permanece lá, mas foi retificado, eliminando suas sete curvas e sua ilha, chamada de Ilha dos Amores e conhecida por ilha dos mosquitos, ou seja, uma bela visão da margem, mas uma irritante realidade num passeio. E tinha garoa.
Na retificação do Tamanduateí, uma de suas curvas era onde hoje está a Rua Vinte e Cinco de Março, famosa no Brasil inteiro, e a Ladeira Porto Geral, a rua onde todo dia há muitos escorregões dos passantes, era um porto fluvial que recebia os víveres vindos das fazendas de São Bernardo do Campo, cidade alguns anos mais antiga que São Paulo. O rio mudou de curso, a ladeira do porto permaneceu, surgiu uma nova rua. E tinha garoa.
A cidade se expandiu primeiro a leste, depois a sul, em seguida ao norte e por último a oeste.
Quando ainda era apenas aquele miolo histórico, surgiram ruas que hoje nos parecem tortas, a Rua Direita, Rua Boa Vista, de onde se enxergavam as montanhas da Serra da Cantareira ao norte, e outras que se cruzam. Estas ruas foram criadas "tortas", enviesadas, porque os primeiros portugueses, com experiência nas monções nas Índias Orientais, e vivendo aqui a realidade das chuvas, abriram caminhos de modo a dar vasão às águas da chuva rumo aos rios.
Muito comum nestas plagas paulistanas eram as casas com porões: elas ficam acima do nível da rua, evitando que a água entrasse e diminuindo a umidade no interior. Os beirais dos telhados também eram longos, bem maiores do que o que se costumava fazer no Nordeste e no litoral paulista, pois como as construções eram de pau-a-pique ou taipas (existem pequenas diferenças na execução de um e de outro), isto é, de barro mesmo, os telhados tinham que ser longos para evitar que a chuva arrancasse o barro e destruísse a casa. Aí surgiu o amor dos paulistanos pelas varandas, hoje impossíveis devido à ausência de segurança pública. Esta tecnologia da construção em barro os portugueses trouxeram ao Brasil a partir de suas heranças mouriscas, visto que os bérberes que invadiram a Península Ibérica a partir do século VIII tinham uma longa tradição que remonta à antiga Suméria, 3.000 a.C., de construir com argila crua.
Até mais ou menos 1850, São Paulo era só de barro. A antiga igreja da Sé era de pau-a-pique, barroca como as igrejas das cidades históricas mineiras, e foi demolida no início do século XX para dar lugar à construção neogótica que conhecemos hoje -- ficou inacabada desde os anos 1930 e teve sua conclusão no inicio dos anos 2000).
Com o ciclo do café, São Paulo, a província caipira esquecida de Deus e do mundo começa a "enricar" e passa a construir com pedras, demolindo as construções de barro. Restaram algumas, como o Convento da Luz, atual Museu de Arte Sacra, o Páteo do Collegio, que despencou nos anos 1970, ficou abandonado, mas finalmente restaurado uns dez anos depois, a Casa do Bandeirante, no Butantã, a Capela do Morumbi, que era capela de fazenda de chá, hoje uma galeria de arte, a Capela de São Miguel, no bairro do mesmo nome, construída pelos índios guaianazes, cristianizados, sob orientação do bandeirante Fernão Munhoz. E tinha garoa.
A cidade cresceu para o norte, nas fazendas de Santana e Nossa Senhora do Ó (Ó é um eufemismo para Nossa Senhora grávida, pois a barriga fica em forma de Ó), paulatinamente as pontes eram construídas, mas as passagens eram principalmente de barcos e todo mundo sabia que o Tietê alagava suas margens na época das monções, isto é, de dezembro a março.
Pelos idos dos anos 1920, houve um projeto que, infelizmente, jamais foi posto em execução: fazer parques nas margens do Tietê, assim como foi feito o Ibirapuera que antes era pântano. Mas apareceu um sujeito -- cujo nome não lembro -- que loteou uma área na região da atual Vila Maria, zona norte de São Paulo, e vendeu os lotes para pessoas humildes, geralmente imigrantes italianos que não queriam mais se amontoar no bairro fabril do Brás. Rapidamente as pessoas construíram suas casas e, nas primeiras chuvas, tudo foi alagado.
Perguntamos: como desde aquela época o poder público permite que se faça isto? A área era inadequada e houve o engano a pessoas humildes.
Depois disso, resolveram domar a indomável natureza. Jamais era para haver avenidas marginais, mas parques.
Desde a república e com a riqueza do café, depois das indústrias, São Paulo raras vezes teve um alcaíde que a amasse, ela foi apenas o trampolim de muitos aventureiros a iludirem diversos povos recém-chegados com a promessa de um cadim de terra.
Pelos nomes dos logradouros -- muitas vezes mudados para nomes de terroristas, como Erundina fez na zona sul, em Interlagos --, vemos que certos locais jamais deveriam ter ruas ou construções, mas parques, caso da Rua do Sumidouro, em Pinheiros, que tem terreno frágil para construção por se achar próximo ao rio Pinheiros. Como Barra Funda, que era um pântano que, após ser cortiço, foi todo cimentado na horrorosa obra do cimenteiro-mor Niemeyer. Água Branca, próxima às margens do Tietê, pântano também. Jardim Pantanal, um pântano que foi invadido por Erundina e virou favela sempre alagando com as notícias de quem não tem nada e perde tudo.
No ponto em que chegamos, com milhões de habitantes, beira o impossível fazer algo -- beira, não é impossível, a impossibilidade se dá pelos vereadores comunas invasores de áreas de mananciais travarem todas as pautas de melhorias, pois seu intuito é a destruição do que é bom e tirar de quem construiu.
No momento, resta-nos entender que a política se faz na própria cidade, embora seja muito mais fácil pôr milhões na Avenida Paulista para pautar Brasília do que meia dúzia na frente da prefeitura de qualquer cidade brasileira para pautar prefeitos e vereadores. Não tem mais garoa.
Fotos:
1- Largo da Sé. Foto de Marc Ferrez, 1890.
2- Igreja N.S. do Carmo, aquarela de Jean Baptiste Debret
3- Igreja N.S. do Carmo hoje e o prédio Secretaria da Fazendo do Estado de São Paulo.
4- Convento de São Francisco.
5- Faculdade de Direito São Francisco, da USP.
6- Mosteiro de São Bento. 1862. Foto de Militão de Azevedo.
7- Mosteiro e Colégio de São Bento hoje.
8- Johann Moritz Rugendas (1802-1858). Costumes de São Paulo.
9- Thomas Ender (1793.1895). Paulista de Poncho.Século XIX. O uso do poncho é uma criação paulistana que os bandeirantes levaram para o interior e o sul do Brasil, assim como o churrasco, um alimento fácil de ser obtido quando se desbrava matas.
10 - Thomas Ender. Interior de uma casa simples em São Paulo: sem mobiliário, sem chaminé. O fogão faz o aquecimento.
11- Thomas Ender. Interior de uma casa nobre em São Paulo. Não há vidros nas janelas, também caríssimos, apenas muxarabiês (treliças), outra herança mourisca que os portugueses nos trouxeram. Uma cadeira apenas, provavelmente feita em Salvador, onde havia uma próspera indústria de mobiliário.
Embora sem muitas ilustrações, para conhecer a história de São Paulo aconselho os dois livros de Roberto Pompeu de Toledo: A Capital da Solidão e A Capital da Vertigem. A história termina em 1954 e o autor disse que não escreverá nada sobre acontecimentos após esta dada. Compreensível, pois São Paulo não existe mais, perdeu sua identidade que sobreviveu a duras penas até os anos 1980 e foi massacrada por políticos oportunistas da terra, como Maluf e Marta Suplicy, ou importados, como Erundina, Aldo Rabelo (que nunca foi prefeito, mas sempre muito poderoso para perseguir as tradições paulistanas impondo a dos migrantes no lugar), e se tornou um amontoado de pedras de cimento de mau gosto e trânsito para testar a paciência de Jó.
São Paulo é apenas uma amostra do que o multiculturalismo invasor faz numa região antes próspera, embora aqui tudo tenha acontecido dentro das fronteiras nacionais.
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