Rafaela abriu os olhos a contragosto, poucos minutos após o fim do efeito do rivotril. Acordar cedo era um estorvo, uma desnecessidade nestes tempos de pandemia, em que o trabalho dela, servidora concursada, poderia ser executado a qualquer hora via home office. Pensou em tomar outro comprimido, mas desistiu. Nos últimos meses vinha frequentemente dobrando as doses e a psiquiatra do serviço médico do seu trabalho já havia reclamado. Desligou a TV e o ar condicionado e pegou o celular onde checou o Insta, o Face, o Twitter e o Zap, no qual verificou, sem abrir, que a irmã lhe mandara mais algumas dezenas de mensagens. O pai de ambas. S. Juvenal, parece, não andava bem, mas quem andava?
Dirigiu-se à cozinha do pequeno apartamento com vista para um parque e vasculhou a geladeira atrás de algo que não fossem as sobras de pedidos no iFood. Achou leite vegetal, uma banana de casca preta e pão de forma de 12 grãos, além de queijo branco e geléia diet de morango. Isso e mais o antidepressivo e um nespresso decaf direto da máquina resolveriam. Comeu, largou a louça suja na pia já atulhada e foi pra varanda para uma hora no elíptico que compara on line assim que ficara claro que a curva jamais seria achatada e o parque mencionado acima deixara se ser opção para atividade física, não sem antes procurar no varal uma toalha, que todas as outras da casa estavam sujas. Não tinha jeito, seria obrigada a chamar a faxineira. Rafa tinha medo do vírus, cujos feitos acompanhava com fervor religioso no noticiário, mas nem tanto que se obrigasse a fazer ela mesma o trabalho doméstico. Quando a maior parte da roupa e da louça estavam sujas, chamava a d. Zita, colocava duas máscaras na cara e rodava de carro até receber a mensagem de que a casa estava limpa e já podia fazer o pagamento via Pix.
Desceu do aparelho para o chuveiro, onde, de olhos fechados, esperou longamente matar o tempo de mais um dia, mas sua consciência ambiental pesava mais a cada minuto de banho, de forma que saiu, enrolou o cabelo na toalha, vestiu o roupão e sentou-se no sofá com o laptop para trabalhar. No apartamento vizinho, aquela maldita criança berrava de novo. Colocou os fones. Desincumbiu-se dos poucos processos cuja análise lhe cabia em pouco mais de 40 minutos e acabou resvalando num site erótico feminino. Abriu um vídeo e em pouco tempo já se masturbava. Parou, pausou o vídeo e correu ao quarto pra pegar o vibrador, gastando em sonhar com o último relacionamento, desfeito por divergências políticas, o tempo restante da manhã.
Agora, no meio da tarde, frustrada por haver cedido em sua determinação de não pedir comida e ter acabado de devorar uma porção dupla de ravióli de frango defumado aos quatro queijos, voltara à varanda, de onde observou que os vizinhos do 507 estavam recebendo amigos! Rafa os odiou com todas as suas forças. Como podiam? Sua vida estava uma merda por conta de gente como eles! Cega de fúria, pegou o telefone para denunciá-los à polícia, notando, ao fazer isso, algumas chamadas não atendidas da irmã. No vizinho do lado, a criança ainda berrava, mas ela já não ouvia. Sua vida se resumia a sentir medo, rancor e ódio, ódio, ódio de todos aqueles negacionistas que trouxeram a doença, que enganavam as pessoas com promessas de tratamentos inexistentes, que desconfiavam da vacina, que saíam às ruas e tentavam viver como se nada estivesse acontecendo! Há um ano não via o pai, para protegê-lo, mas a Sara, aquela mínion imbecil da sua irmã, não tinha a mesma consideração, e não só continuava visitando-o mas levava junto os filhos, aumentando o risco. Por causa de sua irresponsabilidade, dera ao pai um ultimato: só voltaria a vê-lo se ele tomasse a vacina. Há quatro dias ele ligara pra lhe dizer que tomara a primeira dose e lhe pedir que viesse almoçar com a família na Páscoa, mas ela lhe respondera que iria vê-lo após a segunda dose e que era uma irresponsabilidade promover aglomeração.
Entrou finalmente no zap pra ver se tinha mensagem de algum amigo, mas elas agora eram escassas. Mesmo no Face, notara que muitos perfis haviam sido desativados. Puxar conversa comentando numa postagem de algum estranho e procurar alguma série que já não tivesse maratonado na Netflix lhe pareceram opções igualmente fúteis. Sentia-de exausta, frustrada, sem perspectivas. Mais duas mensagens da irmã chegaram pelo Zap, a última dizia "o enterro foi agora às 14h". Horrorizada, clicou na figura da irmã. As muitas mensagens dos últimos três dias davam conta de que S. Juvenal começara a passar mal no dia seguinte à vacinação, e piorara a ponto de precisar ser internado. Melhorou um pouco, mas de noite tivera uma trombose à qual não resistiu. No atestado de óbito, covid, motivo pelo qual não houve velório.
Sentiu que lhe faltava o chão. Ela avisara, pedira, reclamara, exigira, fizera de sua própria vida um exemplo, mas em vão! E agora? Agora que o vírus lhe levara o pai sem nem lhe dar chances de se despedir, o que ela ia fazer? Maldito Bozo! Maldito governo, malditos mínions, malditos vizinhos, maldito mundo, por que não acabava logo? Voltou ao quarto, juntou todos os remédios, tomou-os e se deitou pela última vez. Ninguém no Face estranhou seu desaparecimento nem ninguém na repartição deu pela falta de seu serviço.
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