Orar sem cessar






Quando eu era criança, a caminho da casa de meus avós, lembro de passar por um grave acidente na estrada envolvendo duas carretas. Lembro de ver um homem morto nas ferragens e outro em estado de choque sentado no asfalto. Aquilo me impressionou. Quando cheguei e contei pro meu avô o que havia visto, ele me ensinou uma oração simples para que a alma de quem faleceu naquela condição violenta encontrasse logo a luz e a paz. Ele me disse que a última visão da pessoa deveria ser aterradora. E que a oração deveria dissipar o medo e a preocupação de quem partiu. Isso tem cerca de quarenta anos.

Pois, hoje eu fui buscar um documento em uma movimentada avenida da cidade. O trânsito estava bem ruim, mais que o de costume. Era um acidente. Um ônibus havia passado por cima de um motociclista. No momento que eu atravessei a avenida pude ver que a pessoa já morta estava coberta por papelão, mas os curiosos permaneciam em volta. Orei, como meu avô ensinou, e segui adiante. Quando eu retornei o IML fazia seu trabalho. Várias pessoas em volta com celular em punho. Quando o oficial tirou o papelão para as fotos da perícia, os abutres ávidos começaram a filmar e a narrar. O oficial chegou a protestar - poxa, gente! - e após a foto voltou o papelão.

Eu estava saindo do prédio, e em um plano mais alto, a cena à frente, inteira. Pude ver que se tratava de uma mulher e que pelas roupas estava trabalhando, e voltando do almoço. Parecia jovem. O capacete não aguentou as rodas do ônibus e partiu, e o resultado se espalhava pelo asfalto quente. Não haviam outros ferimentos. Orei de novo. Pensei no filho, no esposo, na família. A vida é frágil e eu acho que esta fragilidade deveria tocar as pessoas em volta, que ao invés de filmarem, deveriam orar. A cabeça esmagada daquela mulher não era ela, ou o que ele foi.

Não é justo ou digno fazer aquele registro. Algumas horas depois recebi no whatsapp um vídeo do acidente, provavelmente feito por um dos que estavam lá ao redor do corpo no chão. No vídeo, é filmada uma criança, o filho da mulher, de capacete, cabeça baixa, chorando no meio fio.

Quem filma narra que a criança estava na garupa, a mãe tinha ido buscar na escola. Filma a mãe morta, o capacete rompido, o crânio esfacelado, o ônibus parado logo à frente. Quando é que ficamos tão insensíveis, sem alma, ao ponto de narrar a mãe morta ao lado do órfão? Orei de novo pela mãe, pelo filho, pela família. Eu já estava chocado. Isso me entristeceu profundamente.

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