"Cio da Terra" - 1 - seiva do mais puro lirismo (Literatura e ensino)

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"Cio da Terra" - 1 - seiva do mais puro lirismo (Literatura e ensino) (escrito em domingo 25 abril 2010 08:30)
O Cio da Terra
Composição: Chico Buarque / Milton Nascimento


Debulhar o trigo
Recolher cada bago do trigo
Forjar no trigo o milagre do pão
E se fartar de pão

Decepar a cana
Recolher a garapa da cana
Roubar da cana a doçura do mel
Se lambuzar de mel

Afagar a terra
Conhecer os desejos da terra
Cio da terra, a propícia estação
E fecundar o chão


Cio da Terra – seiva do mais puro lirismo

para Fabiana

Em Cio da Terra, o trabalho é considerado sagrado, pois constitui um
milagre, um ato de intervenção Divina, a labuta de transformar a natureza (trigo) em cultura (pão). E se os frutos da terra e o trabalho de transformá-los em cultura são sagrados, inevitavelmente o amor que o homem tem pela terra (humanizada pelo uso da animização, ou prosopopeia, que a coloca na condição de mulher) também o é. Daí encontrarmos, no poema, uma relação prazerosa entre o homem, a natureza e o trabalho.

Essa relação pode ser explorada, inicialmente, através de questões que privilegiem o nível associativo de leitura. Quem já comeu pão quentinho e se lambuzou com mel, quem já bebeu suco de cana (garapa), quem já fez amor na relva e já se fartou com todas essas coisas, sabe como podem ser prazerosas tais experiências. E quem já colheu trigo? E quem já colheu a cana e dela fez garapa? E quem do trigo já fez um pão? E quem consegue pensar no trabalho como algo prazeroso? E quem já afagou a terra e sobre ela fez amor? Não seria tão bom se tais coisas fossem possíveis e (um pouco) cotidianas? Eis a ponte necessária para dar significado existencial à leitura do texto e relacioná-lo com questões vitais e ao mesmo tempo teóricas, pois envolvem uma reflexão sobre a felicidade de con-viver e de auto-realizar-se através do trabalho, questões que envolvem práticas cotidianas e que levam ao estudo e ao debate sobre a alienação, o que pode ser desenvolvido interdisciplinarmente com as classes de filosofia, história e sociologia.

Se pensarmos em termos de gêneros literários, é importante observar que a letra de Cio da terra é um poema extremamente lírico, especialmente no que diz respeito à unidade entre forma e conteúdo, à fusão entre o estado anímico do eu-lírico e o tema com a forma, a linguagem trabalhada em sua total expressividade.

Observemos que o poema é composto por três estrofes de quatro versos de diferentes tamanhos, o que nos leva a pensar que temos um poema de versos livres e irregulares; mas se fizermos a escansão dos mesmos veremos que há um paralelismo métrico e rítmico entre eles. O primeiro verso de cada estrofe apresenta-se como uma redondilha menor com acentos na terceira e quinta sílabas. O segundo verso de cada estrofe apresenta-se com nove sílabas e acentos na terceira, sexta e nona sílabas. O terceiro verso de cada estrofe apresenta-se como um decassílabo com acentos na quarta, sétima e décima sílabas. Por fim, os últimos versos apresentam-se com seis sílabas e acentos na quarta e sexta posições. A presente simetria, que encontramos entre as estrofes, resultante do espelhamento, ou paralelismo estrutural, também ocorre no plano sintático-semântico,com uma ressalva para o penúltimo verso do texto.

Observemos que, excetuando o penúltimo verso, os três primeiros de cada estrofe são formados por um verbo transitivo direto, na forma do infinitivo, seguido do seu objeto, de maneira que se repetem várias vezes as palavras “trigo” (3 vezes) e “pão” (2 vezes), na primeira estrofe; “cana” (3 vezes) e “mel” (2 vezes), na segunda estrofe; e “terra” (3 vezes), na última. Notemos também que não somente o número de vezes que aparece cada palavra é equivalente de estrofe para estrofe como também a posição em que as mesmas ocorrem é equivalente. As palavras “trigo”, “cana” e “terra”, que ocorrem três vezes cada, sempre aparecem posicionadas no final do primeiro e segundo versos e no meio do terceiro. As palavras “pão” e “mel”, que ocorrem duas vezes cada, sempre aparecem no final do terceiro e quarto versos. Ora, no que concerne à sonoridade (ou musicalidade), a repetição destas palavras, sempre na mesma posição, confere ritmo e harmonia à canção. Mas será que tantas estruturas de repetição somente contribuem para o ritmo e para a sonoridade? Será que a única função é a de harmonizar a canção ou existirá alguma significação oculta em tantas repetições e paralelismos estruturadores de um ritmo que se repete rígida e incansavelmente de estrofe para estrofe?

Responder à pergunta acima implica em se ultrapassar o nível objetivo da análise em direção ao nível mais subjetivo da interpretação, o que não significa a possibilidade de qualquer interpretação se constituir numa leitura inquestionável, visto ser mais subjetiva. A interpretação, embora mais dependente da experiência pessoal do leitor, também deve ser suscitada pela objetividade do texto. No presente caso, podemos trilhar o seguinte caminho: O poema nos remete aos temas “trabalho” e “natureza” e ambos têm algo em comum: a rotina dos movimentos cíclicos. Dificilmente podemos pensar num trabalho que não apresente uma rotina - e toda rotina leva a um ritmo circular. O mesmo acontece com relação aos fenômenos da natureza. Os ritmos da natureza e do amor – que em última instância também é natureza - se apresentam integrados e circulares, assim como acontece na canção Amor de índio, de Beto Guedes e Ronaldo Bastos:

Tudo que move é sagrado / E remove as montanhas

com todo cuidado, meu amor.

Enquanto a chama arder / Todo dia ver passar,

Tudo viver ao teu lado / Com o arco da promessa

no azul pintado pra durar.



Abelha fazendo mel / Vale o tempo que não voou

A estrela caiu do céu / O pedido que se pensou

O destino que se cumpriu / De sentir teu calor

E ser todo / Todo dia é de viver / Para ser o que for / E ser tudo



Sim, todo amor é sagrado

E o fruto do trabalho é mais que sagrado, meu amor

A massa que faz o pão / Vale a luz do teu suor

Lembra que o sono é sagrado

E alimenta de horizontes o tempo acordado de viver



No inverno te proteger / No verão sair pra pescar

No outono te conhecer / Primavera poder gostar

No estio me derreter / Pra na chuva dançar / E andar junto

O destino que se cumpriu / De sentir o teu calor / E ser tudo


De seis em seis horas, nos trópicos, alternam-se marés altas e baixas... Dia após dia, em quase todo o planeta, retorna o sol... e também noite após noite, em quase todo o planeta, retorna a lua... De semana em semana, sua face se alterna... e, de mês em mês, a mesma face retorna... De três em três meses, em muitos climas, mudam as estações... e, ano após ano, em qualquer lugar, elas se repetem... assim como mês após mês, em qualquer sociedade, menstruam as mulheres... e, mês após mês, por muitos anos, o sofrimento se repete, salvo sejam fecundadas... E assim como a fecundação, resultante do ato amoroso, interrompe o invariável e rígido ciclo, a fecundação da terra interrompe o ciclo do trabalho, pois na alegria da abundância dos frutos colhidos, os homens suspendem o rígido e invariável ciclo das labutas e privações para festejar a fertilidade da deusa Terra, o alimento e a proteção da Lacta-Mama. Assim já faziam os homens desde as antiquíssimas saturnais... Talvez por isso possamos afirmar que o rígido ciclo que observamos na estruturação do poema signifique a plena integração do homem à natureza, ao tempo circular que caracteriza seus movimentos. E talvez por isso a rigidez do invariável ciclo da labuta se interrompa justamente no penúltimo verso, momento do cio, da propícia estação para amar... e todo amor e todo trabalho (não alienados) são sagrados, mais que sagrados, meu leitor...

Marciano Lopes

Do blog: outraspalavras.arteblog.com.br

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