Sobre a posse do presidente estadunidense e a confusão metonímica:

O site O Antagonista gentilmente me entrevistou e, sob o título “A oportunidade Trump“, publicou um resumo muito bem editado da nossa conversa, a qual reproduzo abaixo na íntegra, acrescentando ainda um artigo introdutório inédito.
Introdução de Felipe Moura Brasil:
Uma das formas de demonizar um adversário é afirmar que ele é contra a existência ou a liberdade de tudo aquilo que ele critica em determinados pontos ou pelo modo como foi ou vem sendo feito.
Ninguém, por exemplo, é necessariamente contra a existência do Congresso brasileiro por criticar determinadas decisões lá tomadas e a maioria eventual de parlamentares responsável por elas; mas, com frequência, os defensores dessas decisões, à esquerda ou à direita, acusam os críticos de sê-lo.
Com Donald Trump, ocorre o mesmo em relação às críticas reativas dele à imprensa livre, ao estamento político, a intervenções militares, à imigração, a zonas de livre comércio, à suposta globalização.
Trump, convém registrar, não é contra a existência (ou a liberdade):
– da imprensa livre por chamar de “Fake News” (“notícias falsas”) a CNN e o BuzzFeed;
– do estamento político por denunciar a corrupção em Washington;
– de intervenções militares por lamentar a Guerra do Iraque e buscar evitar qualquer conflito imediato com a Rússia;
– da imigração legal por propor medidas para reduzir a imigração ilegal;
– das zonas de livre comércio por cobrar acordos melhores e mais vantajosos para o povo dos Estados Unidos;
– nem muito menos da globalização (o fenômeno mundial de abertura ao livre comércio entre empresas e indivíduos de países distintos) por rejeitar o globalismo (a concentração de poder transnacional em uma elite de burocratas não eleitos), que é talvez o seu oposto, tendo sido a causa maior da saída do Reino Unido da União Europeia pelo Brexit.
Essas distinções são essenciais para compreender Trump antes de tomar qualquer posição sobre ele e suas propostas, mas a demonização voluntária feita pela imprensa – que trocou o jornalismo pela torcida eleitoral por Hillary Clinton, não consegue domar um republicano avesso às “normas” do politicamente correto e se recusa a buscar expressões fiéis à realidade dos fatos (e do povo) fora do repertório usual de seus próprios slogans classificatórios – causa uma confusão dos diabos: uma espécie de confusão metonímica, na qual se confunde a parte com o todo e vice-versa.
Essa confusão, obviamente, é agravada no Brasil pelo fato de que os jornalistas só traduzem (e traduzem mal) os veículos que atuam como porta-vozes do Partido Democrata, ignorando e evitando o confronto das supostas informações com tudo que, a despeito de eventuais excessos e malucos comuns a qualquer corrente multifacetada, constitui o contrapeso e as refutações das mentiras oficiais no debate público americano: a emissora de TV Fox News; os sites, colunistas e radialistas conservadores; e os numerosos livros de todos esses autores críticos da mídia mainstream.
Aos realmente interessados em desfazer essa confusão, avaliando as nuances e possibilidades de cada caso concreto, dedico as respostas abaixo.
Entrevista com Felipe Moura Brasil:
O Antagonista – Você está animado com Donald Trump?
FMB: Meu temperamento avesso a celebrações antes da hora naturalmente me impede de ficar animado com qualquer governo, incluindo o de Trump, mas a oportunidade que o fenômeno de sua ascensão ao poder abriu para a exposição da distância entre a militância jornalística e a realidade, como fiz durante toda a campanha, é pessoal e culturalmente animadora para mim.
O que comemoro, sim, é a saída de Barack Hussein Obama, o queridinho da mídia cuja estatização do sistema de saúde resultou só para a classe média em um aumento de impostos de 377 bilhões de dólares. Obama ainda elevou a dívida dos EUA em 9,2 trilhões de dólares desde que tomou posse e agora a deixa com um total de 19,9 trilhões – um aumento de 87%.
Sua intervenção desastrosa na Líbia (tão bem retratada no filme “13 horas”) e a retirada precoce das tropas americanas do Iraque em nome do “pacifismo” abriram caminho para o massacre de inocentes e o poder de terroristas islâmicos que ele ainda se recusa a chamar pelo que são. Some-se tudo isto à perda, por exemplo, de 301 mil empregos em fábricas durante seu governo e nem eventuais incertezas sobre Trump impedem um considerável alívio.
O Antagonista – Sou um homem da Guerra Fria, sempre defendi a supremacia dos Estados Unidos e o dever dos americanos de defender o mundo livre contra as tiranias. Você não considera assustador o discurso isolacionista de Donald Trump, que exacerba o acovardamento de Barack Obama?
FMB: É cedo para me assustar, porque não encaixo exatamente na categoria do isolacionismo, seja econômico ou militar, o discurso de Trump até aqui.
Ele é um homem prático, um negociador pragmático que busca, com ameaças e estratégias ousadas, garantir maiores vantagens para o lado que defende em qualquer negociação, não um intelectual ou ideólogo com diretrizes doutrinárias a seguir independentemente do cenário circunstancial.
Enquanto recupera as Forças Armadas americanas enfraquecidas por Obama, o presidente eleito prefere ter a Rússia como aliada no combate ao terrorismo islâmico a alimentar uma tensão desnecessária entre as duas potências nucleares em função de disputas em outros países.
Por outro lado, seu secretário de defesa, o general James “Mad Dog” Mattis, vê com preocupação o crescimento da Rússia no Oriente Médio e, como Trump deu todas as demonstrações de estar disposto a ouvi-lo, também poderá ter uma posição mais cética em relação a Vladimir Putin. A tendência é ficar com um olho no peixe fritando e outro no gato do lado.
Como homem da Guerra Fria, você sabe que a Otan foi criada para impedir o “avanço comunista” da então União Soviética com base no artigo quinto do Tratado de Washington segundo o qual um ataque armado contra um ou mais países da Europa e da América do Norte deve ser considerado um ataque contra todos eles.
Trump cobra que a Otan se atualize e se una para combater o terror islâmico e que os países-membros gastem pelo menos os 2% de seus PIBs em suas próprias defesas militares, conforme previsto nas diretrizes da aliança – um índice que países que não são pobres, como Alemanha, França, Canadá e Itália, não vinham atingindo nos últimos anos, enquanto os EUA, disparado na liderança, gastam em média 3,6%.
Como disse à Fox News, ainda durante a campanha, o potencial secretário de Comércio, Wilbur Ross: “Eu concordo com Trump que devemos ajudar a prover a defesa, mas isto é diferente da ideia de dar a eles um passe-livre para as suas próprias defesas. Então acho um ponto de vista muito sensato.”
A Guerra do Iraque, por exemplo, ficou em grande parte do imaginário americano como uma intervenção desastrosa, que custou muito dinheiro e muitas vidas, mas o fato de Trump tê-la condenado (tanto a iniciativa de George W. Bush quanto a retirada das tropas por Obama) em período eleitoral, especialmente em um momento de maior preocupação com a situação econômica e em uma campanha baseada em colocar a América em primeiro lugar, não quer dizer necessariamente que ele vá fugir à responsabilidade dos EUA de defender o mundo livre contra as tiranias.
Neste momento, o que está claro é que ele quer combater o Estado Islâmico, evitar outras intervenções mal planejadas e deixar as Forças Armadas bem preparadas para qualquer necessidade eventual de ação, sem permitir que os demais países abusem economicamente da proteção bélica americana.
Ao contrário da prática de Obama, Trump ao menos prega que, uma vez em guerra, não se pode abandoná-la antes de garantir a vitória.
O Antagonista – O livre comércio e o capitalismo multinacional foram os maiores responsáveis pelo predomínio econômico dos Estados Unidos. O protecionismo de Donald Trump não coloca em risco tudo isso?
FMB: Depende de até onde Trump vai levar a sua reação a acordos de livre comércio que tiveram efeitos negativos sobre a economia e a força de trabalho americanas, como o Nafta – entre EUA, Canadá e México –, que ele chamou de o “pior acordo comercial na história”.
Trump prometeu reaver os empregos perdidos para fábricas instaladas em outros países e, com os recentes anúncios de Ford, General Motors, Walmart e Bayer de investimentos bilionários e geração de milhares de empregos nos EUA, parece estar cumprindo a promessa antes mesmo de tomar posse, à base de ameaças de aumento nas tarifas de importação.
Obviamente, qualquer liberal (no sentido do termo no Brasil) é contra o protecionismo no sentido clássico, de livro-texto, que consiste basicamente em um aumento desenfreado dessas tarifas. Se Trump consolidar um protecionismo como tal, atropelando a oposição em seu próprio partido, não será bom para o comércio em longo prazo.
Mas, por enquanto, como um negociador que se impõe até para forçar os demais países a fechar acordos melhores com o seu, ele está apenas brigando pelas empresas e empregos e sendo incrivelmente bem-sucedido.
Rever acordos danosos para os EUA não é necessariamente antiliberal, antimercado ou antiglobalização, pode ser também mais a favor do país que acumular déficits comerciais crônicos e bilionários com os outros.
O fato de ter incomodado seu grande rival no mundo, a China, que curiosamente virou o xodó de Davos, pode ser visto também como uma indicação positiva, assim como os recordes históricos batidos pelo Dow Jones após sua eleição talvez indiquem que Wall Street não espera um desastre.
Vale lembrar que os EUA se tornaram a maior potência industrial do planeta já no século XIX, muito antes da globalização.
O Antagonista – Você não se preocupa com o conflito de interesses de Donald Trump? Você realmente acredita que seus negócios não vão contaminar suas decisões políticas? 
Trump concorreu com Hillary Clinton, que é o “conflito de interesses” em pessoa, consumado na troca de influência e favores com doadores da Fundação Clinton (espécie de Instituto Lula americano) durante sua gestão como secretária de Estado do governo Obama.
A debandada de doadores da Clinton Global Initiative, braço da fundação, após a derrota eleitoral de Hillary é tida agora nos EUA como a confirmação de que as doações só tinham mesmo sentido com as contrapartidas arranjadas na administração pública.
Como Trump, além de já ser um bilionário (assim como vários membros de sua equipe), é infinitamente mais marcado sob pressão pela imprensa do que Hillary, e seus eventuais conflitos de interesse por enquanto são apenas hipotéticos, tenho os receios normais quanto a qualquer governante ambicioso, mas muito menores do que seriam no caso dela.
Trump também já anunciou que deixará suas posições nas várias empresas das Organizações Trump e tem seguido as principais recomendações de manual de ética neste sentido, mesmo quando a lei americana não as obriga.
A vigilância da sociedade obviamente é necessária, mas, assim como um empresário (que aliás teria votado em Hillary) pode ser prefeito de São Paulo, outro também pode ser presidente dos EUA.
O Antagonista – Você apoia o muro na fronteira com o México? A América Latina é o quintal dos Estados Unidos. Donald Trump vai renunciar ao seu quintal? Não é grave para o Brasil deixar de ser o quintal dos Estados Unidos?
FMB: O muro, é sempre bom registrar, não combate a imigração legal, mas a ilegal, que, embora inclua a entrada de gente que depois não comete outras ilegalidades nos EUA, também inclui a entrada de criminosos que traficam armas e drogas, roubam, estupram, matam.
Considero perfeitamente legítimo que um país proteja suas fronteiras da maneira como julga mais adequado e o eleitorado apoiou Trump na construção do muro. Apoiar mesmo, eu apoio a construção de um igual nas fronteiras brasileiras com a fortuna roubada na propinocracia petista.
Grave para o Brasil e o resto da América Latina é eleger governantes que só despertam nos cidadãos a vontade de ir embora para os EUA.
Felipe Moura Brasil

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