Quando a Maria da Penha não pode ser apenas números!

Por José Mário:

Sabemos que a violência no país em todas as suas variáveis chegou a patamares que o cidadão de bem, em diversos momentos, tem nas forças policiais um certo alento, pois entende que mesmo sendo mal aparelhadas e não recebendo o apoio institucional devido, estarão nas ruas buscando cumprir com suas atribuições constitucionais.

E lendo rapidamente os cadernos de notícias, me deparei com um relato de uma mulher que afirma ter sido covarde e brutalmente agredida, e as fotos são uma prova inquestionável, onde em meio a violência que estava sofrendo, precisou se submeter aos caprichos um elemento covarde, na tentativa desesperada de evitar até mesmo ser morta.

No seu triste relato, ela afirma que quando finalmente conseguiu sair de casa e pedir ajuda a polícia, a equipe de policiais acionados para atender a ocorrência, perguntou se a vítima queria mesmo que a polícia fosse até onde estaria o seu agressor, porque se assim fosse, ele seria preso e seguiria para o Cotel, presídio local aqui na RMR. Ela, dentro do seu desespero, preferiu chamar (clamar mesmo!) por seus familiares.

Chamo a atenção para essa atitude irresponsável e até conivente (com o agressor!), bem como de despreparo e desrespeito para com uma mulher vítima e indefesa, com que esses policiais conduziram a situação, onde ainda por cima, achando pouco, e além de tudo, abandonaram o local sem acompanhar a vítima e seus familiares, quiçá até elaboraram o boletim de ocorrência, aumentando sobremaneira a dor, o constrangimento e a sensação de abandono e indiferença com que as mulheres em situação de desse tipo é obrigada a passar.

Fiquei muito triste com tudo isso, especialmente porque em meados de 2010 quando comandávamos o 20º BPM, cuja a sede era localizada no município de São Lourenço da Mata, nos deparamos quase que cotidianamente a estudar as ocorrências da área, o que o fazíamos logo que iniciava a semana, segunda-feira pela manhã.

Das 8 horas até as 9:30h, buscávamos ler e analisar todos os boletins de ocorrências lavrados pelas nossas guarnições durante o final de semana, buscando identificar necessidades de instrução, de revisão do planejamento, de saber o que estaria afligindo nossos cidadãos, missão precípua de qualquer instituição policial.

Em meio a comunicações de tiroteios, apoios a outras instituições, acompanhamento a setores da prefeitura ou mesmo em apoio a representantes do conselho tutelar, verificamos que além dos homicídios ocorridos na nossa área de atribuição, algumas outras ocorrências que não eram devidamente tratadas com a mesma importância de um homicídio, pelas circunstâncias relatadas, poderiam sim resultar em lesões de vários níveis, ou mesmo terem desfechos trágicos causando mortes das vítimas, e elevando exponencialmente os números de homicídios que tinham registrado no meu birô. Ocorrências como brigas de casais, agressões e vias de fato, além das ameaças, eram ocorrências que muitas vezes não geravam morte no momento que aconteciam, mas que poderiam sim serem as motivações horas ou mesmo dias depois, e eram somadas, normalmente, em números de até 30 vezes maiores que os números de mortes que tínhamos tido, como exemplos, em muitas situações tínhamos registro de 3 ou 4 mortes violentas, mas que as ocorrências acima passavam de 80, 90 ou seja, não estávamos "enxergando" o problema em sua plenitude, e segurança pública não basta apenas correr atrás do problema, antes entender o que está gerando essas práticas, isolar as variáveis causais e promover as soluções que estão disponíveis, não é fácil...

Mas mesmo assim, passamos a reunirmos nossos oficiais e praças mais experientes e colher dados para tentar oferecer alguma resposta para cada situação. Após as reuniões em caráter de emergência (pois logo teríamos novo final de semana), passamos a elaborar novos procedimentos das nossas equipes de policiais para fazer frente a essas demandas.

Fixamos em diretriz do nosso comando que todos os policiais acionados para ocorrências de ameaças por exemplo, não se resumisse a registrar o boletim de ocorrência, e tampouco apenas sugerir que a vítima fosse até a delegacia mais próxima e prestasse uma queixa. Antes seguissem em diligências para localizar o acusado, e encontrando ou não, conduzisse a vítima para formalizar a queixa na delegacia. Com isso notamos que as pessoas se sentiam mais protegidas pela força policial e essa sensação incentivava outras e principalmente, inibia os acusados de perpetrarem a ameaça, pois os mesmos eram apresentados para se explicarem e respondiam um procedimento pela atitude.

Com o tempo, foi uma grata satisfação observar que essas ocorrências a medida que íamos avançando nos procedimentos operacionais e técnicos, os índices diminuíam, pois não eram mais tratados como banais, e sim como atos de infração da lei e constrangimento de cidadãos de bem.

Porém, os relatórios nos mostraram que apenas os registros das ocorrências envolvendo brigas de casais não estavam diminuindo, pelo contrário, alguns dias até tinham aumentando... Fomos investigar o que estava acontecendo e pasmem, as vítimas, as esposas e companheiros dos agressores, não queriam acompanhar prestar queixa (!), e a própria lei 11.340, lei conhecida por lei Maria da Penha, não obrigava as vítimas a serem conduzidas de forma coercitiva, obrigada mesmo pelas forças policiais.

Um imenso impasse! Sim, impasse que não poderia jamais nos afastar da missão de proteger as pessoas, de salvar vidas. Passamos a novos estudos, novas pesquisas e conversas com as guarnições envolvidas, onde os comandantes relatavam que elas preferiam não prestar queixa porque as delegacias eram longe, ou devido o horário avançado ou mesmo porque os agressores tinham ido dormir ou fugiram... e sempre emendavam com a frase “ele é bem calmo e me trata bem”, “isso é só quando bebe”, “é só quando não gosta da comida”, ou “porque não lavei a roupa...”, ou porque faltou água...” enfim, elas (as vítimas) colocavam a culpa nelas mesmas, como se as agressões cometidas contra elas fossem algo justificado...

Novamente tivemos que "remendar" as leis, encontrar brechas para cumprir aquilo que nos propusemos. Passamos então, mesmo com o risco de sermos acusados de abusos ou outras ações mais, a instruir a tropa em determinação para que, uma vez acionados para ocorrência de Maria da Penha, se a vítima chamou a polícia ou alguém da vizinhança, e não quisessem seguir com os procedimentos estabelecidos para a sua própria proteção, como prestar queixa na DP, deveria ser detida e conduzida para a delegacia acusada de trote. Fomos aos programas de rádios, usamos a mídia escrita, fornecemos nosso contato pessoal, e incentivamos as vítimas a denunciarem, afirmamos que iríamos buscar os agressores em qualquer lugar e hora.

É assim fomos avançando, ora atendendo vítimas que queriam proteção, ora vítimas que por medo ou insegurança, não queriam seguir para a delegacia, ainda. Mas quando as primeiras ações começaram a serem postas em práticas, levar as vítimas mesmo contra a sua vontade, apesar do chororô inicial, nossos policiais ao longo do trajeto iam mostrando a elas, socializando essas mulheres de que as agressões poderiam ficar piores, que muitos casos redundaram até em lesões graves ou mesmo mortes, e que tínhamos a lei Maria da Penha para tentar proteger as pessoas desse tipo de atitude. Mas que elas precisariam seguir até o fim, pois a Polícia Militar estaria acompanhando todo o tempo. Assim, íamos alcançando enfim fortalecer esses laços tão mal feitos, e ganharmos definitivamente a confiança de uma parte tão vulnerável da sociedade. Não deixávamos as vítimas sozinhas, pois após as conduzir para a DP, a guarnição aguardava o término do depoimento delas, consolo a e apoiava, e ao final, as conduzia de volta as suas residências, e antes de ir embora, faziam uma rápida verificação se o agressor não tinha voltado e, após deixar o contato para emergência, retornava ao policiamento. Que ato contínuo, todos os agressores envolvidos, eram procurados independentemente de passar um dia ou um mês da agressão cometida, pois nosso compromisso era que não voltassem jamais a cometerem tais atos, e eles precisariam serem apresentados para responder e justificar perante a lei, em consequências de suas atitudes mesquinhas e covardes.

E assim foi, de caso em caso criando uma regra, mudando um hábito, construindo uma estratégia para única e simplesmente, salvar vidas e proteger indefesos.

Não foram tarefas fáceis de serem executadas, pois as próprias vítimas (mulheres casadas, que amavam seus agressores), no início temiam perdê-los, temiam depois não terem aonde morar, temiam depois até não terem a família que tanto amavam... Mas sim conseguimos. Conseguimos romper a barreira de muros e portas, e tínhamos assim defendido os inocentes dentro de suas próprias casas, e que isso seria uma praxe.

Conseguimos!

Criamos assim um procedimento operacional, com base na teoria das janelas quebradas desenvolvida na década de 60, onde o governo do Estado, ainda governado pelo Eduardo Campos, in memoriam, chamou de "Boas Práticas" essas atitudes dos policiais militares do 20º BPM, inserindo no PACTO PELA VIDA, e determinou que a Corporação adotasse em todo o Estado. Foram 17% de redução naquele ano dos crimes violentos contra a vida na nossa área, um dos melhores resultados da série histórica.

Quantos e quantos casos mais de agressões precisarão ocorrer para que as autoridades, políticos, policiais (militares ou não), percebam que não existe outra forma de atender esse tipo de situação senão conduzindo o agressor, esse covarde e sua covardia, a responder pelas suas ações, na delegacia e por fim, num presídio.

Foram quase 29 mil casos de violência doméstica e familiar no Estado de Pernambuco de Janeiro a Setembro deste ano, onde 2.648 é a média do ano, segundo a SDS, não computando o mês de Outubro, onde com certeza o não atendimento com competência e dedicação por parte dos profissionais de polícia, não contribui para prevenir ou diminuir esses números, muito mais até, são vetores que potencializam o crime e incentivam seus autores, é a impunidade, câncer da violência no Brasil.

Espero que a Corporação busque apurar essa atitude que destrói, corrompe e abala os grandes avanços que estamos conseguindo na prevenção da violência contra as mulheres.

Não é assim que se trabalha!
Não é assim que se faz polícia!
Não é assim que se salvam vidas!

TC PMPE - Asp. 1990

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