Suponha que você acorda um dia e descobre que virou manchete. Um grande jornal publicou na sua capa uma matéria de que você foi visto entrando em um conhecido bordel de Londres acompanhado de uma gangue de criminosos. Não há evidências de que você cometeu algum crime e o único fundamento da história é ela ter sido contada à imprensa por um policial designado para investigar a gangue na companhia da qual você foi supostamente visto. O policial, você suspeita, é rancoroso contigo: talvez ele não goste de sua posição política; talvez esteja invejoso da atenção que você recebeu como vereador recém-eleito. Qualquer que seja a causa, sua vida foi irreversivelmente danificada. Não há acusação criminal, não há chance de defesa e nada que possa livrar-te da fofoca maliciosa.
Nós, no Reino Unido, fomos criados para acreditar que tais coisas não acontecem por aqui, que a imprensa obedece a restrições de verdade e decência que requerem que alegações sejam feitas de forma clara e responsável, e que fofoca não possui autoridade pública. Nós também assumimos que não é papel da polícia a discussão pública de acusações criminais, mas dos tribunais, e que todas as acusações devem ser governadas pelo princípio de que o acusado é inocente até que a culpa seja comprovada.
Mas o caso que descrevi reproduz o caso de Damian Green, que está à beira da ruína como resultado de uma fofoca à qual foi dada cobertura de capa do The Times. Eu não faço ideia se a fofoca é verdadeira e, se verdadeira, é evidência de um crime. Essa não é a questão. Todos nós poderíamos ser colocados de uma hora para outra na situação do Sr. Green, e é apenas a nossa longa tradição de procedimento jurídico que impede que isso aconteça agora mesmo a mim ou a você.
Este ataque abusivo a um súdito britânico, apresentado ao mundo por um grande jornal, é esperado, agora que nossos velhos hábitos de respeitos foram desenraizados. A causa desse desenraizamento não é a malicia eventual de um policial corrupto. Esta é apenas uma das muitas consequências da cultura promovida pelas mídias sociais. O Facebook e o Twitter invadiram e privatizaram a praça pública, expondo impiedosamente nossos segredos e arrancando de todas as figuras públicas os meios de proteger sua privacidade, sem os quais elas não podem exercer suas atividades.
Infelizmente esta mudança tem sido recebida com mais entusiasmo que repulsa pelo povo britânico, muitos dos quais passam o dia transmitindo imagens de si mesmos, tuitando opiniões babacas e, em geral, agindo como se o propósito da vida fosse chamar atenção para sua enfadonha tentativa de fazer parte dela. Em tais circunstâncias, as distinções entre a verdade e a mentira começam a se tornar confusas, assim como distinções entre acusação e culpa. Em questões de significância, é improvável que a verdade seja descoberta mesmo nos 280 caracteres hoje permitidos. Estas enormes mudanças parecem não ter feito nada para despertar o público face ao poço no qual estamos afundando juntos. Estamos entrando em um mundo em que a fofoca maliciosa alcança o nível da caridade honesta e emoções de multidões atropelam os mais elementares clamores por justiça.
O que deve ser feito com relação a isto? Eu tenho algumas sugestões. A primeira é estabelecer uma instituição – chamemos de Ministério da Verdade – em algum país legalmente isolado (por estranho que pareça, me vem a Rússia à mente) devotado a tuitar histórias maliciosas sobre todos que são “alguém”. Se todos se tornam vítimas dessa malícia, as pessoas vão começar a ver o Twitter pelo que ele realmente é, como uma ferramenta que pode facilmente ser usada para o mal. Os tuítes recentes do Presidente Trump com relação aos muçulmanos vão encorajar pessoas a defenderem seus concidadãos muçulmanos contra um inimigo em comum, e aquelas pessoas atacadas no Twitter serão inspiradas a viver em um espírito de resistência, como exemplos para as únicas pessoas que importam, seus vizinhos e amigos. A tuitosfera será marginalizada como algo degradante, a ser frequentado apenas por idiotas carentes de atenção. E políticos que se comunicam pelo Twitter perderão todo respeito que poderia, caso contrário, ser conferido a eles.
A segunda sugestão é mais séria. A raiz da cultura é a imitação e, graças a tela à mão, estamos aprendendo a imitar aquilo que está abaixo de nós. Cultura tradicional tratava de imitar o que está acima de nós: os exemplos e realizações que conferiam dignidade à ordem social e que nos ensinam a ter orgulho dela. A mídia social é um ataque a esta cultura e à ideia de responsabilidade sobre a qual ela repousa; a resposta correta aos abusos atuais é, portanto, lançar um esforço de renovação cultural através do ensino e do exemplo, e através da dramatização do abuso, como Shakespeare dramatizou o abuso da lei n’O Mercador de Veneza. Nós devemos explicar às crianças a presunção de inocência, que repousa no coração da nossa herança legal, e a proteção que isto oferece às pessoas comuns contra todos aqueles que as intimidariam e explorariam. Nós devemos mostrar porque o respeito pelas outras pessoas envolve o respeito a suas privacidades, a seus segredos, a tudo que é íntimo e não seja objeto de verdadeira preocupação pública.
Isto é mais fácil de ser dito que feito, você responderá, e a resposta está correta. Tudo que é realmente valioso é mais fácil de ser dito do que feito. Mas nós afundamos em um pântano cultural e precisamos nos desprender, o que só pode ser feito por meios culturais. Pessoas estão sendo tentadas à teia maliciosa da fofoca e estão ficando coladas em suas fibras pegajosas. Para lutar contra isto, temos que mostrar, através do exemplo, como viver de outra forma, como libertar as pessoas antes de elas serem transformadas numa bolota de malicia e comidas, corpo e alma, pela aranha da “pós-verdade”.
Professores devem ter como seu principal objetivo afastar seus alunos das novas tentações da aranha, de forma que eles possam olhas as outras pessoas com respeito. Tal educação é o que Platão chama de “o cuidar da alma”, e ele tratava isto como fundamento indispensável da existência política. Nesta questão, creio eu, Platão estava correto, e ele definiu uma tarefa que se decai sobre todos nós, inclusive sobre a mídia nacional.
[*] Por Sir Roger Scruton. “Punishment without crime”. Sir Roger Scruton: Writer & Philosopher, 5 de Dezembro de 2017.
Tradução: Andrey Costa
Via Tradutores de Direita
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