Paulo Cruz - O que é necessário para uma civilização existir?


Essa foi a pergunta que fiz a meus alunos, em sala de aula, essa semana; e o debate suscitado foi bem interessante.
Minha sugestão foi para que listássemos os itens fundamentais que compõem uma civilização. Imaginando um mundo em seu início, sem nenhum tipo de fundamento físico ou moral, e diante do reconhecimento de que estamos cercados por semelhantes nossos, que tipo de estrutura seria necessária para transformar esse agrupamento de pessoas em algo organizado?
Regras/leis, organização, liderança, princípios morais, cultura, respeito, objetivos/metas, liberdade, honestidade, foram alguns dos itens listados por aqueles que, costumeiramente, participam das aulas. Em seguida dei um passo além, perguntando coisas do tipo: como garantir leis justas? Quem seria o líder? Nossos princípios morais teriam origem em nós mesmos ou em alguma espécie de religião? E seguimos debatendo, tentando lançar bases para nossa hipotética civilização.
Nesse exercício imaginativo, alguns, como sói acontecer entre nós – brasileiros amantes do Estado –, caíram na tentação de sugerir aqueles itens que estão na boca de nove em cada dez brasileiros: saúde, educação, transporte, segurança etc.
Adverti-os de que tais demandas não são, num primeiro momento, essenciais na formação de uma civilização; e que, geralmente, quando dizemos isso, estamos transferindo a responsabilidade para outros – no caso, o Estado. Formar nossa civilização é nossa responsabilidade como habitantes desse local hipotético, ainda sem um governo institucional. Bola no chão (para evocar o clima de Copa do Mundo) e seguimos debatendo.
Uma liderança tem de ser espontânea, concordamos; provavelmente alguém cujas ideias se destaquem na resolução de nossos problemas mais imediatos. Controlar seus possíveis impulsos de despotismo vai depender da compreensão que todos – inclusive ele – tivermos de sua função: servir ou ser servido? Se nossa base moral tiver origem em nós mesmos, creio que será mais difícil convencer as pessoas que devem obedecer a um consenso. No entanto, se a base for religiosa, baseada na percepção de que não somos causa de nós mesmos, é possível que o temor submeta a todos e nos dê a consciência de que devemos ser humildes. Inclusive, muito provavelmente essa seja a base de tudo; é a nossa consciência moral que fundamentará o modo como nossa civilização será construída. A  história da humanidade assim nos mostra.
A exemplo das civilizações antigas, é do sagrado que vêm as experiências de ordem da humanidade. De acordo com Mircea Eliade, em O Sagrado e o Profano: “O ‘Mundo’ (quer dizer, ‘o nosso mundo’) é um universo no interior do qual o sagrado já se manifestou e onde, por consequência, a rotura dos níveis tornou-se possível e se pode repetir. É fácil compreender por que o momento religioso implica o ‘momento cosmogônico’: o sagrado revela a realidade absoluta e, ao mesmo tempo, torna possível a orientação – portanto, funda o mundo, no sentido de que fixa os limites e, assim, estabelece a ordem cósmica”.
Essa revelação da realidade absoluta é simbolizada pelos mitos, que, segundo Bronislaw Malinowski, são “um ingrediente vital da civilização humana”. Atualmente, as religiões, que são simbolizações mais diferenciadas (para usar um termo de Eric Voegelin), têm essa função.
O que eu quero dizer com isso? Que as religiões são forças poderosas de ordem simbólica da realidade, que moldam a vida humana de acordo com os ritos que atualizam os mitos fundadores. No caso do Brasil, as influências cristã, africana e indígena são a base de nossa vida religiosa e de nossas relações institucionais.
Partindo desse princípio, fica fácil perceber que a moral religiosa é parte fundante das civilizações em todo o mundo, em todas as épocas.
A mais antiga forma de governo, a monarquia, evoca sua origem divina, como diz Dante Alighieri em seu tratado Monarquia: “[…] para que os princípios da paz e da liberdade sejam amplamente aplicados aos diferentes tempos e lugares, faz-se necessário que o imperador terreno seja inspirado por Aquele que ordenou a superior disposição dos céus, a fim de que por essa suma ordenação, às suas doutrinas todas as coisas se ajustassem”.
Diante dessas constatações, a pergunta que fiz aos meus alunos nos deu a exata dimensão de nossa situação atual: quais desses princípios – regras/leis, organização, liderança, princípios morais, cultura, respeito, objetivos, liberdade, honestidade etc. – estão presentes e abundantes, hoje, na sociedade brasileira? A resposta foi unânime: nenhum! Ou seja, o vivemos a débâcle da civilização brasileira. Uma crise institucional sem precedentes, a cultura devastada, a história manchada por interpretações ideológicas, e, sobretudo, o ódio pelo país, há muito tratado como terra de oportunistas, exploradores e malandros de toda sorte.
Como sair dessa situação aterradora? Talvez tentando definir o que é uma civilização e como reconstruir seus valores.
O historiador Kenneth Clark, autor do célebre documentário e livro Civilização (1969), talvez nos ajude a responder a essa pergunta: “O que é civilização? Não sei. Por enquanto não consigo defini-la em termos abstratos. Mas acho que, vendo-a, posso reconhecê-la, e olho para ela neste momento. [John] Ruskin [escritor e crítico de arte britânico] disse: ‘As grandes nações escreveram sua autobiografia em três livros: o de seus feitos, o de suas palavras e o de sua arte. Para entender um é preciso ler os outros; contudo, o mais autêntico é o terceiro’. Acho que tem razão! Escritores e políticos podem expressar vários sentimentos nobres, mas estes não passam do que podemos chamar de declarações de intenções. Se eu tivesse que escolher o que expressa melhor a verdade da sociedade, se o discurso de um ministro da Habitação ou as construções reais da época, diria que são as construções”. E arremata: “Civilização é algo mais do que energia, vontade e poder criativo […] Como defini-la? Em poucas palavras: um sentido de permanência […] Acho que o homem civilizado precisa sentir que ele tem um lugar no tempo e no espaço, e que tem um futuro e um passado”.
Um sentido de permanência – de que temos um passado e um futuro.
Mas que passado e que futuro?! Nosso passado foi destruído pelas interpretações ideológicas, fruto da redução marxista da realidade e sua narrativa maniqueísta do eterno embate entre dominadores e dominados; interpretação que levou o brasileiro a odiar a história de seu próprio país. O golpe republicano de 1889 apagou nossa identidade nacional – que, aliás, Getúlio Vargas tentou reconstruir artificialmente, sem sucesso, graças a Deus. Os grandes nomes da nossa literatura – e são muitos! – são considerados elitistas, e suas obras foram substituídas por pastiches emburrecedores e literatura militante. Cinema? Não temos. Nossa arquitetura enclausurou-se nas aberrações de Oscar Niemeyer. Nossa arte decaiu de Vitor Meirelles, Abigail de Andrade e Aleijadinho a Tarsila do Amaral, Romero Britto e Lygia Clark. Não que esses últimos sejam, em si, ruins; mas que todo o resto foi praticamente apagado do horizonte de nossas referências. Falando em referências, e nossa tradição política? E José Bonifácio, Ruy Barbosa, Joaquim Nabuco, Visconde de Jequitinhonha e outros? Foram substituídos por isso que está aí. E nosso grande estadista, dom Pedro II? Foi reduzido a um intelectual alienado. Nosso período monárquico? A séculos de exploração das riquezas naturais e da mão de obra escrava. Futuro? Que futuro?
Portanto urge, antes de tudo, recuperarmos a nossa história, libertando-a das garras das interpretações ideológicas. Partindo da literatura clássica, buscado por fontes primárias e por interpretações não contaminadas por esse criticismo raivoso e pouco reflexivo que domina a academia há, praticamente, 50 anos. A ideologia do neocolonialismo deve dar lugar às visões mais amplas da história das civilizações. A escravidão deve ser analisada, ao máximo, sem o sentimentalismo que obnubila nossa percepção da realidade.
Só assim teremos, verdadeiramente, o nosso Brasil de volta.

Originalmente em Gazeta do Povo

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