HUME, A CREDIBILIDADE DO TESTEMUNHO ALHEIO E OS MILAGRES:

Rodrigo Jungmann
Em seu clássico, "An Enquiry Concerning Human Understanding" (1748), o grande filósofo escocês David Hume (1711-1776) sugere que dois fatores devem ser levados em conta quando julgamos a veracidade de qualquer testemunho. O primeiro destes é a credibilidade de quem testemunha. E, não menos importante, a probabilidade do que é testemunhado. Inevitavelmente, um critério respinga sobre o outro.

Isso faz perfeito sentido. Se eu sei que Manuel é um notório mentiroso, uma assertiva tão banal quanto "Vi sua irmã no cinema ontem" pode ser objeto de justificada incredulidade prévia, mesmo que não haja nada de estranho na circunstância de ter estado minha irmã no cinema na véspera.

Por outro lado, eis que sei de fonte segura que Joaquim é um homem honestíssimo, mas, para minha surpresa, ouço de Joaquim a assertiva assombrosa: "Vi uma vaca voando". Muito provavelmente eu concluiria que Joaquim está padecendo de algum transtorno mental, em que pese sua reconhecida idoneidade.

E o que isso tem a ver com milagres? Segundo Hume, tudo.

Faltariam aos milagres, enquanto sustentáculos da fé, em primeiro lugar, testemunhas suficientemente críveis. Estaríamos, na maior parte dos casos, ou mesmo em todos, tratando de eventos supostamente ocorridos no passado e para o quais dependemos de relatos de segunda mão de homens, se não necessariamente desonestos, ao menos, pouco instruídos, supersticiosos e crédulos.

E, ainda que assim não fosse, uma assertiva como "Jesus caminhou sobre as águas do Mar da Galiléia" é, segundo Hume, desde sempre, altamente improvável. Contraria uma regularidade sobejamente verificada em nossa experiência. Pessoas não caminham sobre a água. Isso vai contra as leis da natureza. É intrinsecamente improvável.

Seria mais razoável, assegura-nos Hume, concluir que as testemunhas da caminhada de Jesus sobre as águas são ou simplesmente inidôneas ou pouco instruídas ou crédulas etc., do que concluir que o milagre em questão tenha de fato acontecido.

A falsidade do relato seria mais provável do que o seu conteúdo: o próprio milagre. Por esse motivo seria mais razoável descrer do milagre e crer na regularidade da natureza.

E aqui Hume erra triplamente.

I) Falta-nos um bom motivo, a ser exposto mais adiante, para crer que necessariamente falte credibilidade às testemunhas do passado pela boa e suficiente razão de que é inteiramente possível que estejamos às voltas com milagres presentes e que acreditemos neles de forma perfeitamente razoável e justificada. Não podemos simultaneamente nos atribuir credibilidade presente e negá-la aos homens do passado. Isso seria arbitrário.

II) Um milagre não necessariamente é sobrenatural ou contrário a qualquer lei da natureza - prefiro definir "milagre" como "ocorrência espantosa e benéfica". Disso fornecerei um exemplo mais abaixo.

III) É meramente estipulativo afirmar que um milagre é, a priori, improvável. Improvável em relação ao quê? Se Deus existe, é ocioso especular sobre a probabilidade de milagres. Se Deus, em sua onipotência, decreta a qualquer momento a ocorrência de um milagre, sobrenatural ou não, a probabilidade de sua ocorrência num dado momento é de precisamente 100%.

(Mesmo que concordássemos com Hume que o milagre não pode nos levar à crença, a crença em Deus - digamos que você acate uma ou mais das Cinco Vias de Tomás de Aquino -, pode nos dar uma razão para não excluir de pronto a possibilidade de milagres)

Isto posto, penso que

A) Podemos ter testemunhos críveis de milagres presentes (e, por extrapolação de milagres passados).

B) Tais testemunhos não necessariamente envolvem eventos sobrenaturais e

C) Se tudo isso é verdade, crer em Deus como fonte do milagre é epistemicamente razoável e são.

Quanto a A), eu lhes digo: Milhares - talvez milhões - de testemunhas críveis reportam a visão de cadáveres incorruptos de santos. A melhor explicação para isso pode ser a intervenção divina. O amigo ateu já provou o contrário?

Quanto a B), reporto que em 27 de março de 1950, segundo uma matéria publicado pela revista "Life", TODOS os quinze componentes de um coral de igreja, em Beatrice, Nebraska, atrasaram-se no mínimo 10 minutos para um ensaio marcado para as 7:20 da manhã. Foram afortunados. A igreja entrou em chamas às 7:25.

Se, como nos informa a respeito do ocorrido o verbete "Miracles" do "Blackwell Companion to the Philosophy of Religion", a probabilidade de atraso individual for estipulada em 1/4, a probabilidade de que apenas dez se atrasassem é de (1/4) elevado à décima potência, ou seja, de menos de uma em um milhão; a probabilidade de doze se atrasassem é de uma em 16 milhões. A probabilidade de que os quinze se atrasassem é de... Bem, o "Companion" não nos informa, mas seria muitíssimo menor ainda!!!

Com base em A) e B) concluo - CONTRA HUME - que testemunhos presentes são críveis e que, por paridade, testemunhos passados também podem sê-lo.

Concluo - uma vez mais CONTRA HUME - e agora com base apenas em B), que é legítimo tratar ocorrências não sobrenaturais como milagrosas e como sustentáculos da fé.

E, por fim, concluo, CONTRA HUME, e à luz do que foi exposto em A) e B) , que derivar a nossa crença em Deus de um milagre - sobrenatural ou não - é epistemicamente defensável e são.

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