A Metamorfose e coisas que precisam definhar e morrer:

Por: Lucília Coutinho
Antes dos 20 anos, li A Metamorfose da Franz Kafka. É curtinho, dá para ler numa sentada. Mas é o tipo de livro ao qual se volta por ter muitas leituras, como uma parábola.
 

Foi nele que percebi, com a linguagem que eu tinha na época, que a quantidade de poder no mundo é sempre a mesma, mas muda de mãos. O que mais tarde vi elaborado de modo muito melhor: não há vácuo de poder.
 

Quando Gregor Samsa acorda transformado num inseto repugnante, toda sua família, dependente dele para tudo, começa a se mexer. O pai, sempre doente, tem que se mexer para arrumar sustento, a irmã, jovem, também se mexe e trabalha. A mãe cuida dele, afinal, era filho.

Quando cada um torna sua vida útil, Gregor, o ex-provedor, tendo que ser tolerado e cuidado, perde pouco a pouco a sentido da própria existência, diminui de tamanho a cada dia, sempre mais inconsciente de si até parar na lata de lixo como se jamais tivesse existido.
 

Por mais que se sinta pena da triste vida do personagem Gregor, ele pode ser muitas coisas. Ele pode ser um amor não correspondido que um dia é esquecido. Mas ele pode ser um estado assistencialista ao mesmo tempo que é quem o sustenta que, ao ficar paralisado, escondido, motivo de horror e de vergonha, obrigou a família a se mexer para manter a própria vida, fazendo até os doentes se curarem porque a sobrevivência urge.
 

A transformação de Gregor foi um segredo guardado a sete chaves. Foi uma espiral do silêncio. Ninguém chamou cientistas para descobrir o que ocorreu. Simplesmente conviveram com "aquilo". 

A família enfrentou o horror da realidade sem escândalos.
Gregor é complexo, tem muitas leituras e sou incapaz de abranger tudo o que pode ser. Kafka dizia que era apenas uma história e negava qualquer interpretação. Mas como pôs a história a público e não a escondeu no fundo do baú,ela tomou vida própria e interpretações as mais variadas.
 

Ninguém quer o destino de Gregor. Mas há coisas que merecem este destino de definhar e morrer. Nosso estado moldado à imagem e semelhança da constituição comunista, disforme, dita "cidadã", já mostra suas feições de enorme inseto horrendo para nós. Este inseto tem que diminuir, minguar, enfraquecer, até se tornar pequeno ante a multidão escravizada que o sustenta. Pequeno, insignificante e repugnante para ser jogado na lata de lixo.
O poder emana do povo.

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