Por: Lucília Coutinho |
Temos muitos talentos perto de nós que não são percebidos porque permitimos que o risível termo "classe artística" fosse levado a sério. "Classe artística" não é diferente da classe dos assentadores de azulejos, classe dos estivadores, classe dos cobradores de ônibus. Uma classe, por si só, mostra que todos têm trabalhos idênticos sem o fundamental para a arte: talento e criatividade regadas a disciplina e um profundo abandono de si mesmo para trazer ao mundo o que não existia.
Classe artística é uma contradição em si mesma, portanto, pois sequer emula as guildas e lojas medievais onde o aprendiz, após anos ao lado dos mestres nos ateliês, começando por varrer o chão e lavar pincéis para ver a necessidade da ordem e da limpeza, depois misturando pigmentos para ver a infinita possibilidade das cores e só mais maduro podendo tocar o quadro do artista pintando a grama, as flores, um detalhe da paisagem ao longe. E quanto mais avança, mais aprende, até chegar à representação da forma humana para, sozinho, criar sua primeira obra, la prima opera, a obra prima. O trabalho artístico, embora possa ser feito em boa companhia sob a supervisão de bons mestres, é individual e solitário, as guildas e lojas servindo apenas como uma administração conjunta para seguro de vida na velhice e ajuda a eventuais viúvas e órfãos de seus associados, seus recursos guardados numa arca com seis fechaduras, cada diretor em posse de uma chave apenas, de onde veio a expressão, já contando com o exagero, "trancado a sete chaves".
A música, dentre todas as artes, parece, a mim, que nada entendo de filosofia, a mais próxima à perfeição pois, embora use os instrumentos fabricados por mãos humanas -- que eventualmente são obras de arte --, que seja executada por mãos humanas, é intangível, é a mais abstrata, a que mais nos leva a roçar aquele mundo etéreo das ideias que a arte tenta parir em formas ora palpáveis, como a escultura e a arquitetura, ora ilusórias, como a pintura e a fotografia. Por causa da música, Da Vinci dizia a Michelangelo que a pintura era superior à escultura, pois o barulho do atelier do escultor não permitia a presença de músicos.
Acompanhando o homem desde a aurora dos tempos com batuques primitivos que ora ressurgem, o ponto inicial da nossa música foi o desenvolvimento do cantochão, tradicionalmente atribuído ao Papa Gregório Magno, e foi no ano 1000 que o monge Guido D'Arezzo sistematizou as notas como as conhecemos hoje a partir de um hino a São João:
GUIDO D’AREZZO
UT queant laxis - DO
REsonare fibris - RE
MIra gestorum - MI
FAmuli tuorum - FA
SOLve polluti - SOL
LAbbi reatum - LA
Sancte Ioannes - SI
Repetindo o que disse acima, temos talentos entre nós que devem ser divulgados e prestigiados, pois da mesma forma que o caminho da Salvação é individual, também é o caminho que devemos abrir como desbravadores da selva hostil entre uma luta e outra contra feras famintas e enfurecidas, mas sempre procurando aumentar os períodos para a verdadeira apreciação da beleza, da virtude e da verdade.
Tandem in Lucem:
https://youtu.be/YDSLniCJxD0
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