Notas sobre o filme "Persuasão"







Baseado na obra homônima da escritora Jane Austen, lançado há pouco pela Netflix:


A diretora Carrier Cracknell tentou transformar a protagonista Anne de "Persuasão", na versão cinematográfica de 2022, na Elizabeth Bennet de Keira Knightley em Orgulho e Preconceito de 2005 - até no físico e nos trejeitos. Se eu já não gostava da composição da personagem desta última, imaginem minha decepção com o que fizeram com Anne Elliot, a heroína de "Persuasão".

Mesmo utilizando nesta versão a própria Anne para comentar com algum charme e mordacidade os acontecimentos na medida em que eles transcorrem diante dos nossos olhos - como se precisasse... - o recurso fracassa pois Anne é o justo oposto do que se vê na tela. E, pior: com esta suposta originalidade, o roteirista eliminou o que Austen tem de melhor para as adaptações cinematográficas da sua obra: os diálogos perfeitos, curtos e dinâmicos, com patamares de significados que deliciam seus admiradores. Mas para isso seria necessário um diretor que gostasse do romance e atores capazes de dizer muito de modo contido, com expressões precisas de maneira a permitir à plateia vivenciar a repressão dos sentimentos do período vitoriano, por exemplo. A diretora ainda apaga o vilão da trama transformando-o numa caricatura que não justifica sua presença no filme e elimina a reflexão sobre o amor que é rapidamente esquecido.

Minha impressão é que todos os dias a diretora tinha algo mais importante pra fazer do que filmar. Ela passa batida pelos eventos tornando tudo raso, superficial e sem sentido. As transições temporais são quase um apelo pra que se faça uma pipoca sem precisar dar pausa no controle. Quanto desperdício.

Cracknell não entendeu a personagem principal e nada que fizesse poderia consertar esta atrocidade. A Anne de Hatie Morahan é uma faladeira quando a verdadeira Anne é quieta e silenciosa. A diretora fez dela uma mulher bem humorada e sardônica enquanto a Anne de Austen é melancólica, humilde e doadora. E assim, o filme caminha de um equivoco a outro para o dissabor dos fãs da escritora.

Anne de Jane Austen é uma espectadora da vida ao seu redor, ela é invisível aos demais e aceita esta realidade com um estoicismo que dói na gente. Seu silêncio permite que a superficialidade e irresponsabilidade da classe a que pertence apareçam na sua ferocidade egoísta e mostra o papel insignificante e instrumental das mulheres naquela sociedade. Tudo se descortina diante dela quando o destino lhe dá uma nova chance. E acompanhar esse processo, além, claro, da escrita genial de Austen, é uma das belezas do romance, o que não acontece nesta versão chapada de 2022. Um desperdício de meios.




Mas nem tudo está perdido. Ao assistir ao filme "Downton Abbey II A nova Era", lançado também em 2022, fico plenamente convencida que Julian Fellowes, o criador da série de sucesso e dos dois últimos filmes, é herdeiro legítimo de Jane Austen. Diálogos - em particular aplaudo as falas da personagem da soberba Maggie Smith - e excelente descrição da nobreza campesina inglesa da época, todos os personagens extremamente bem delineados, a dosagem exata entre drama e humor, e a aura solar dos romances de Jane Austen. O filme lava a alma e dá vontade de assistir toda a série outra vez.

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