Do observatório da Imprensa:
Os anjos e os demônios
Por Carlos Brickmann em 03/09/2013 na edição 762
Comecemos deixando as coisas claras: se o governo tivesse importado alguns milhares de médicos islandeses, a discussão sobre o tema seria muito menos intensa. Como são cubanos, o fator ideológico tornou-se preponderante: há os que os consideram ótimos de origem, há os que os consideram péssimos de origem. O debate jornalístico sobre...
1. a necessidade da importação;
2. a implantação do projeto;
3. a capacidade dos médicos que vêm ao Brasil
... foi praticamente inexistente.
Quase não se discutiu pela imprensa a questão da saúde. Acontece que saúde engloba engenharia, educação, higiene, prevenção, medicina. O médico é a última etapa no processo de manutenção da saúde: é como o goleiro de um time. Havendo um bom sistema de saúde, cabe a ele enfrentar problemas que, apesar de todas as precauções, acabam atingindo os pacientes.
Imaginemos um grotão onde não haja médicos e que agora, graças à importação de profissionais estrangeiros, passe a ter pelo menos um. Imaginemos também que este médico seja dedicado, competente, preocupado com o bem-estar da população, que consiga falar e entender sua língua com perfeição. Ele saberá cuidar de uma diarreia; mas que fazer quando a criança, curada, beber novamente água contaminada, a única de que dispõe? Se o grotão tiver saneamento básico (uma questão de engenharia), o paciente sairá do médico devidamente curado, sem grande risco de recaída. Se não houver saneamento básico, a diarreia vai voltar, vai enfraquecer o paciente, pode matá-lo. Ensinar as pessoas a lavar as mãos, especialmente antes de comer, é questão educacional; e vai contribuir poderosamente para reduzir o número de doenças. Se as pessoas não lavarem as mãos, o médico estará novamente enxugando gelo: o paciente curado hoje volta no mês que vem.
Mesmo em São Paulo, onde o sistema de saúde pública é um dos melhores do país (embora ainda esteja longe do ideal), há setores em que os médicos quase desanimam. Digamos que uma criança seja espancada e levada ao hospital. Ficará ali algum tempo, receberá alimentação correta, terá as contusões tratadas. Ao voltar para casa, será novamente espancada, e retornará ao hospital. E por que é espancada? Talvez porque o pai não a suporte; talvez porque o pai esteja bêbado; talvez porque, com fome, chore de madrugada, e o pai, cansado do serviço pesado, lhe bata para que pare de chorar e de atrapalhar seu sono. Em qualquer das hipóteses, o médico resolverá o problema momentâneo, sem conseguir evitar que se repita. E não adianta afastar a criança dos pais: onde colocá-la? Prender o pai, por agressão? OK – e quem trará algum dinheiro para as despesas da casa?
Colocar o médico como solução para problemas que não têm origem na medicina é a principal falha do programa de importação de mão de obra. É como importar excelentes agricultores e colocá-los onde não haja água nem terra fértil. Isso independe da nacionalidade dos profissionais, de sua ideologia, dos acordos entre governos, da forma de pagamento dos salários. Depende, isso sim, da formulação de uma política de saúde que envolva água tratada, cuidado com os esgotos, educação para a higiene, e só então a intervenção do médico, venha de Cuba, da Islândia, dos Estados Unidos, da Coreia do Norte ou da Espanha.
Mas os meios de comunicação se imbuíram, ao contrário, do clima de disputa política: as reportagens se referem exclusivamente às mentiras sobre o acordo com Cuba (hoje já se sabe que a negociação começou muito antes do que foi anunciado), sobre o pagamento aos médicos, sobre a volúpia do governo brasileiro pelos profissionais cubanos, sobre a falta de vontade dos profissionais brasileiros de ir para cidades pequenas e pobres, sobre as excelências proclamadas da medicina cubana. São temas que valem matéria, que devem ser analisados, esmiuçados, denunciados, mas que não são o ponto principal da questão. O ponto principal é a saúde do brasileiro e o que deve ser feito para que caia a mortalidade infantil, melhore a qualidade de vida e se reduza o número de pessoas que caem doentes por pura e simples falta de condições de se manterem saudáveis.
Voltemos a São Paulo, o estado mais rico do país. A segunda cidade do estado, Guarulhos, com pouco mais de 1,2 milhão de habitantes, ainda não trata seus esgotos (as obras começaram há pouco tempo – já é um avanço!). Vai tudo, sem tratamento, para o rio Tietê. Os esgotos de Guarulhos atravessam a capital do estado e vão para o interior, e só lá pela região de Barra Bonita, a uns 300 km de distância, o rio volta a ficar limpo, com oxigenação suficiente para que os peixes ali vivam e a água se torne de novo fonte de vida e alegria, não de preocupação.
Isto ocorre em São Paulo, região da capital. Agora pense numa cidade distante, com estradas de terra e ruas sem pavimentação, com água de cacimba à disposição de seus habitantes e de seus animais. Ter um médico ali, cubano, brasileiro ou costarriquenho, é melhor do que não ter médico nenhum; mas saúde pública é um pouco mais do que isso. E os meios de comunicação, que deveriam articular, hierarquizar e aprofundar as notícias, não poderiam ignorar este fato tão simples.
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