Flavio Morgenstern - Guerra contra a inteligência:

Ser inteligente dá muito trabalho. (isto não tem nada a ver com falta de humildade: humildade é se colocar na sua posição no mundo, não fingir que não sabe o que sabe; tá vendo? isto demanda inteligência, adquirida depois de anos de erro).

Enquanto todos aproveitam o domingo pra descansar o cérebro vendo besteira na TV, você se pegará em desespero de falta de tempo para entender a complexidade da geopolítica na península coreana, e lembrará que precisa estudar um pouco de ideologia socialista aplicada às tradições orientais, notará que esqueceu um livro o Kawabata pela metade, dá uma pesquisada no Google por outros livros comentando a modernização e ocidentalização da Ásia, adiciona 80 artigos pra ler no feed da semana e lembra que perdeu a noite de domingo com uma pergunta que nem começou a sonhar em responder.

As pessoas pensam em inteligência como um dom, não como trabalho. Trabalho é sacrifício. É fazer mais do que te demandam. É auto-sabotar o prazer e o descanso por algo maior.

Anos trabalhando com a idéia de inteligência e, bem ao contrário do glamour inicial, logo você está enfastiado e dando bem pouco valor praquilo que parecia surpreendente no começo (falar difícil, exibir títulos, demonstrar que domina teorias inúteis). Você passa a tratar inteligência e intelectuais mais ou menos como um mecânico trata um assistente: ele vai resolver alguma coisa ou vai ficar viajando na maionese?

(e isto tem algo de humildade: você logo passa a se achar bem pouca coisa, notando que um mecânico te tira de enrascadas sérias, e você é mal capaz de calcular o quanto deve pra ele.)

As pessoas, sobretudo jovens, universitários e incipientes nesse negócio de trabalhar com ideias (repetindo o verbo: trabalhar, não viajar) se encantam com a ideia de nunca precisar lidar com um cliente, calcular um logaritmo e, sobretudo, carregar um peso e vestir um uniforme.

Mas boa parte (a maior parte) fica perdida naquela fase de não entender nada, não fazer grandes sacrifícios pra tentar entender (ou admitir algo simples: capitalismo é o máximo, 99% da sociologia é tão útil quanto um gramofone, tanto anti-depressivos quanto pasteleiros são mais úteis do que o feminismo, etc). Aí prefere tirar o melhor proveito disso.

E tome um monte de teses, textões, livros e colunistas com palavreado embotado falando da complexidade do mundo com linguajar que nunca deixa claro se está dizendo X, Y, Z ou beta, um pensamento que nunca parte do ponto A para chegar ao ponto B (ou... a um ponto), e vamos falar bem complicado sobre o fato de não termos nada para falar e o mundo ser mais difícil do que nossas teoriazinhas e tudo nos surpreender e como o povo é imbecil de não pensar como nós e quando erramos tudo é culpa da alt-right, dos supremacistas e das fake news.

É legal saber. É difícil estudar pra saber. Como tudo na vida. O problema das Humanidades é que, ao contrário de ser um neurocirurgião ou um vendedor de cachorro-quente, dá pra você fazer toda a sua carreira falando bonito sobre não saber nada do que sentando a bunda na cadeira, aprendendo e sendo cobrado a cada vez que falha.

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