Paulo Cruz - Uma luz para a educação:

I
“A mais completa falta de vida, de realidade, de espírito pedagógico, de compreensão das necessidades e destinos do magistério na escola elementar, de todos os meios de desenvolvimento da inteligência, da vocação e do gosto, faz desses institutos oficiais, na capital do império, um simples mecanismo de diplomar a incapacidade, perpetuando na educação popular o grosseiro automatismo, cuja extinção deve ser o primeiro intuito da reforma, e que tem como resultado acanhar e esterilizar as gerações na sua primeira flor”. (Rui Barbosa, Parecer para a reforma do ensino primário, 1882)

Sempre considerei Sociedade dos Poetas Mortos um filme medíocre. Talvez por também não gostar do ator Robin Williams, mas aquilo sempre me pareceu algo afetado e artificial; e, diga-se de passagem, com um resultado pouquíssimo louvável. Mas, quando tornei-me professor, passei a considerá-lo não só medíocre, mas nocivo.

Um professor idealista e inconsequente, um bando de adolescentes de classe média, entediados em suas vidas sem sentido, e está preparado o cenário para a desgraça: subverter a ordem natural das coisas em sinal de rebeldia libertadora; trocar a formalidade pela informalidade – nas palavras de Eugen Rosenstock-Huessy, uma das principais características da revolução na linguagem; rejeitar o velho, o “batido”, a fim de instaurar o totalmente novo (e totalmente desconhecido); trocar a interpretação tradicional, consagrada, por intuições românticas – revolucionar, portanto; eis o trunfo do professor John Keating, cuja impetuosa e descontraída maneira de seduzir seus pupilos não passou incólume, mas levou ao fim a que toda exaltação revolucionária leva: a morte. Keating teve suas mãos sujas de sangue por achar que poderia moldar o mundo à sua maneira, por pregar que, para substituir algo considerado antiquado, não basta simplesmente aderir à novidade, mas é preciso destruir o antigo – o alvo simbólico, nesse caso, é J. Evans Pritchard, PhD., literato ficcional cujo livro tem as páginas arrancadas pelos alunos.

O professor Keating é motivado pela estupidez pretensiosa de que fala o escritor Robert Musil (em Da Estupidez), e seduz seus alunos, que são movidos pela estupidez singela. Diz Musil:

“A primeira [honesta] é, sobretudo, a uma fraqueza geral do entendimento, a segunda, de uma fraqueza deste em relação a um objeto particular”; ou seja, “esta estupidez [pretensiosa] é menos uma falta de inteligência do que uma abdicação desta perante tarefas que pretende cumprir e que se lhe não adequam […] Pode conter todos os caracteres negativos de um entendimento fraco, mais os que implicam uma afetividade desequilibrada, contrariada, irregular, numa palavra, doentia […] A estupidez de que se trata aqui não é uma doença mental; nem por isso deixa de ser a mais perigosa das doenças do espírito, pois ameaça a própria vida.”

John Keating seduz facilmente aqueles jovens, sedentos que estavam por alguma emoção em suas existências vazias; para esses tipos inquietos (comuns na juventude), a incapacidade de perceber o tempo apropriado para as coisas só pode ser apaziguada por uma educação capaz de lhes “refinar as consciências”, como disse Viktor Frankl, diante de um mundo no qual o “sentimento de vazio” se propaga com intensidade alarmante. O mote do professor Keating, Carpe Diem – colha o dia, aproveite o momento –, retirado de um poema de Horácio, é a isca para que seus discípulos desprezem qualquer construção ordenada do conhecimento, abandonem a lenta e, às vezes, tortuosa estrada em direção à verdade, e se deixem levar pelo sentimentalismo, num estetismo vazio e utópico – e mortífero.

Mas a estupidez maligna do professor Keating não é algo que só existe na ficção – e é exatamente por isso que passei a odiar o filme após tornar-me professor. Seus maneirismos, suas evasivas românticas (desprovidas de sentido concreto) – “Mas só nos sonhos um homem pode ser livre” –, podem ser encontrados em muitos pedagogos e educadores que surgiram no último século. Para esses arautos do “ensinar a ensinar”, o notório saber não significa nada, é mero esnobismo burguês. São esses os portadores do “canto do cisne” da nova pedagogia, da pedagogia libertadora, os “professores de espanto” das ideologias revolucionárias disfarçadas de educação.

Esse tipo de “intelectual proletaroide” (termo cunhado por Alain Besançon), atraído pela pedagogia moderna, deseja vingar-se da sabedoria clássica, a fim de fazer valer seu ideal socializante de igualdade. Para isso, não se furta de usar os mais sórdidos subterfúgios e falsificações da realidade. Um deles é a afirmação de que a palavra aluno, criada na Idade Média, significa sem luz. A primeira vez que ouvi esse absurdo – e já o ouvi muitas vezes – irritei-me tanto que passei um bom tempo tentando rastrear sua origem. Não sei se encontrei, mas, curiosamente, Gilberto Dimenstein, criador do portal Catraca Livre, e Rubem Alves – aquele teólogo que enveredou para o delírio pedagógico após visitar a famosa Escola da Ponte, em Portugal –, dois baluartes dessa onda de educação que não educa, e que são lidos em profusão por professores e burocratas do ensino, mostraram-me, talvez, de onde tenha se espalhado essa mentira.

A dupla escreveu um livro cujo título é a própria exaltação dessa maledicência pedagógica moderna: Fomos maus alunos. Ao lê-lo, percebemos que o título não é metafórico. Em determinado momento, Dimenstein, em aparente tom de indignação, diz: “A palavra alumni vem de sem luz. Isso é o aluno, não é isso? Alumni, não tem luz. Então, essa é a visão que se tem do aluno” (p. 56). Uma mentira deslavada que não tem outra finalidade senão a de ajudá-los a propagar sua ideologia de “professor que não ensina nada”, como disse Rubem Alves em entrevista repetida ad nauseam em reuniões de planejamento pedagógico.

Alumnus vem de alumni, que significa “criança de peito”, “pupilo”, “discípulo”. Alumni deriva de alere, que significa “alimentar”. Luz é lumen, e não tem absolutamente nada que ver com a história; mesmo porque o “a” não é privativo no latim como o α (alfa) é no grego. Portanto, não tem sentido dizer que a-lumen (que é o nome de um minério) significa sem luz. Esse é o tipo de produto de uma estupidez doentia. E os professores, em sua maioria estúpidos honestos, propagam essas pedagogias ideológicas que nos levaram às últimas posições nos testes internacionais. Os alunos não são mais incentivados a estudar, são proibidos de memorizar informações, são desestimulados a tirarem as melhores notas e não podem ser submetidos a disciplina alguma – muito pelo contrário, já são frequentes os casos de agressão a professores cujo agressor fica totalmente impune.

É tempo de despertar e lutar pela verdadeira educação de qualidade, que passa por uma revisão completa da Constituição, do ECA e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). Sem isso, estaremos fadados ao fracasso.

Cumpre extirpar toda a ideologização com a qual oportunistas revolucionários envenenaram tão nobre atividade. Cumpre aos pais assumirem a responsabilidade de tornar seus filhos cidadãos civilizados. E cumpre aos verdadeiros professores, cuja vocação – não a empolgação juvenil com o magistério e nem o oportunismo da estabilidade estatal – move os passos, respirar fundo e assumir novamente a tarefa de construir o futuro da nação.

É urgente refletirmos a máxima de C. S. Lewis: “O dever do educador moderno não é o de derrubar florestas, mas o de irrigar desertos”.

II

“Educação é […] tirar do espírito as faculdades nele contidas em germens, as potências, as virtualidades, as aptidões, e trazê-las à luz por uma cultura geral e harmônica, por uma série de processos bem ordenados e racionais, fazendo triunfar o homem do animal, a humanidade da animalidade, as paixões nobres, os instintos elevados das inclinações e rudes tendências da natureza animal.” (Ernesto Carneiro Ribeiro, médico, filólogo e educador)

No artigo da semana passada tratei brevemente de como as pedagogias modernas – ideológicas, por assim dizer – foram responsáveis, em grande medida, por destruir a educação. Usei como exemplo o filme Sociedade dos poetas mortos e a figura de seu protagonista, o professor John Keating, vivido pelo falecido Robin Williams, para mostrar como essa pedagogia permissiva e utópica, baseada na mera satisfação dos sentimentos – não na ciência e no conteúdo do saber acadêmico –, leva à morte. Afirmei que o professor Keating sofre de um tipo de doença analisada pelo escritor Robert Musil, a estupidez pretensiosa, cujos sintomas são uma ameaça à vida – sua e dos outros.

Retomo o conceito de Musil, mas através da leitura que dele fez o filósofo Eric Voegelin em sua obra Hitler e os alemães, transcrição de uma série de preleções realizadas em 1964 na Universidade Ludwig Maximilian, de Munique. A preocupação de Voegelin é descobrir quais fatores contribuíram para a ascensão de Adolf Hitler ao poder. Hitler, um tipo estúpido, medíocre, só pode ter sido eleito por uma sociedade acometida da mesma estupidez. Por isso, dentre outras coisas, Voegelin analisa o conceito de Musil e a ele acrescenta algumas características ainda mais nocivas, a da estupidez criminosa. Ele afirma: “A estupidez deve significar aqui que um homem, por causa de sua perda de realidade, não está em posição de orientar corretamente sua ação no mundo em que vive” (p. 121 da edição da É Realizações). Sem tal orientação, uma espécie de revolta egolátrica toma o lugar daquela humildade do “vermezinho de Jacó” (Is 41,14), tão bem descrita pelo profeta bíblico; soa em nossos ouvidos a voz sedutora – “sereis como Deus” – que nos faz agir como se fôssemos nós mesmos os criadores do mundo.

O que Voegelin chama de “perda da realidade” é, precisamente, o esquecimento de que não somos causa de nós mesmos, de que vivemos uma tensão em direção ao fundamento de nosso ser. Platão chama a essa tensão de metaxy – participação. Todo ser humano vive essa tensão – pois possui a Imago Dei –, e ela é a responsável por nosso equilíbrio no mundo. Nossa dignidade e nossa ação no mundo dependem dessa tensão. Diz Voegelin: “A perda de dignidade vem através da negação da participação no divino, ou seja, através da desdivinização do homem. Mas já que é precisamente essa participação no divino, esse ser teomórfico, que constitui essencialmente o homem, a desdivinização é sempre seguida de uma desumanização” (p. 118).

Veja, caro leitor, isso não tem que ver com religião, com frequentar uma igreja ou, quiçá, nem mesmo crer em Deus. Tem que ver com a consciência de que 1) o mundo já existia quando eu nasci; 2) não sou a causa de mim mesmo; 3) uma ordem maior do que eu parece ter trazido as coisas até aqui; 4) é preciso compreender apropriadamente o que existe para depois certificar-me de que/quais mudanças são necessárias. Desprezar esses princípios básicos, que, inclusive, podem ser seguidos por qualquer pessoa – religiosos, ateus ou agnósticos –, causa desordem interior e caos social.

Uma sociedade formada por indivíduos em tal situação, ou, pior ainda, governada e educada por indivíduos cujas naturezas renderam-se ao materialismo messiânico, às ideologias utópicas e às paixões revolucionárias – todos efeitos da perda da realidade –, está fadada a viver em desordem. Somos, em todo tempo, seduzidos pela arrogância espiritual (hybris) que nos coloca em confronto direto com a ordem da realidade. Desse modo, é fácil sermos dominados por ególatras, por populistas aproveitadores, ou mesmo por facínoras bem ou mal intencionados.

A falência total de nossas instituições é um reflexo disso. Nossas escolas e universidades se tornaram meros laboratórios para experiências sociológicas; nossa política foi tomada por homens que se veem plenos de direitos sobre uma população totalmente subjugada e dependente; nossa convivência social, se avaliada pela descrição que faz o filósofo italiano Giovanni Pico Della Mirandola, quando descreve nossa virtude do livre arbítrio em seu tratado Discurso sobre a dignidade do homem – “Poderás degenerar até aos seres que são as bestas, poderás regenerar-te até às realidades superiores que são divinas, por decisão do teu ânimo” –, é fácil saber qual escolha fizemos.

Para sairmos dessa situação só há um caminho, dificílimo, caro leitor, mas não impossível. Quem nos indica é o próprio Eric Voegelin em suas Reflexões autobiográficas (É Realizações): “Recuperar a realidade, resgatando-a da deformação a que foi submetida, exige bastante trabalho. É preciso reconstruir as categorias fundamentais da existência, da experiência, da consciência e da realidade. É preciso, ao mesmo tempo, investigar a técnica e a estrutura das deformações que se acumulam no dia a dia. E é preciso desenvolver conceitos que permitam agrupar em categorias a deformação existencial e sua expressão simbólica” (p. 143).

O projeto de Voegelin é ousado, é tarefa para um filósofo experiente, e ele próprio investiu todos os seus esforços intelectuais nisso, durante toda sua vida. No entanto, para nós, cidadãos comuns, é perfeitamente possível “reconstruir as categorias fundamentais da existência, da experiência, da consciência e da realidade”; isso nada mais é do que paidéia (educação) platônica, tão bem sintetizada na famosa Alegoria da Caverna – também conhecida como o Mito da Caverna –, eixo central de sua principal obra, A República. A Alegoria da Caverna é a reunião simbólica de todas as ideias platônicas; mas, para nosso intento, seu aspecto pedagógico é fundamental.

Homens presos, praticamente imóveis, desde pequenos, ao fundo de uma caverna. Estão de costas para a saída que, ao longe, não lhes oferece nenhuma luz. Atrás dos prisioneiros está uma fogueira e, entre a fogueira e os homens, um muro e um fosso, por onde passam pessoas carregando todo tipo de objetos – estátuas de homens e animais, utensílios etc. –, mostrados por cima do muro e projetando suas sombras na parede ao fundo da caverna. Os prisioneiros pensam que a realidade são aquelas sombras. Um dia, um deles é solto e forçado a sair da caverna. Ao sair, não consegue olhar as coisas por conta da luz do sol. Com o tempo ele se acostuma, começa a olhar as imagens refletidas na água e enxergar as coisas, diretamente, à noite; até que, por fim, passa a enxergar tudo às claras, bem como o próprio sol em todo o seu esplendor.

E é o próprio Platão quem nos explica: “Agora, meu caro Glauco, precisarás aplicar essa alegoria a tudo o que expusemos antes, para comparar o mundo percebido pela visão com o domicílio carcerário, e a luz do fogo que nele esplende com a energia do sol. Quanto à subida para o mundo superior e a contemplação do que lá existe, se vires nisso a ascensão da alma para a região inteligível, não te terás desviado de minhas esperanças, já que tanto ambiciona conhecê-las. Só Deus sabe se está de acordo com a Verdade. O que eu vejo, pelo menos, é o seguinte: no limite extremo da região do cognoscível está a ideia do Bem, dificilmente perceptível, mas que, uma vez apreendida, impõe-nos de pronto a conclusão de que é a causa de tudo que é belo e direto, a geratriz, no mundo visível, da luz e do senhor da luz, como no mundo inteligível é dominadora, fonte imediata da verdade e da inteligência, que precisará ser contemplada por quem quiser agir com sabedoria, tanto na vida pública como na particular” (517 b, c).

Ou seja, o conhecimento é o árduo caminho pelo qual a alma sai da escuridão das aparências e ruma em direção à Luz da Verdade, à Ideia do Bem. Mais do que isso: para Platão, a educação é uma conversão da alma ao Bem, é despertar a faculdade do conhecimento que já está na alma e converter-se, daquilo que é perecível para o que é imperecível: “A educação não será mais do que a arte de fazer essa conversão, de encontrar a maneira mais fácil de consegui-la; não é a arte de conferir vista à alma, pois vista ela já possui; mas, por estar mal dirigida e olhar para o que não deve, a educação promove aquela mudança de direção” (518 d).

Platão ainda afirma que tal projeto só terá sucesso se aqueles, uma vez chegados ao conhecimento da verdade, voltarem e libertarem os demais (519 c, d).

E o que é essa trajetória senão a recuperação da existência (liberdade), da experiência (das trevas à luz), da consciência (da mentira à verdade) e da realidade (da aparência à realidade)? O que a pedagogia platônica nos oferece, portanto, é uma restauração da ordem da alma e da sociedade. Toda educação deve ter esse – e somente esse – objetivo. Sem isso, permaneceremos na caverna, acorrentados por oportunistas, enxergando somente sombras produzidas por seu fogo ideológico, incapazes sequer de alimentarmo-nos sem a ajuda de algozes que nos juram que esse é o melhor dos mundos.

E o Lula? Ora, busquemos a educação e a liberdade, e, em algumas décadas, não precisaremos mais falar em Lulas, Aécios, Têmeres, Renans…

III

À Iane Kestelman

“Quanto à espécie de alma de maior autoridade em nós, devemos aceitar a ideia de que ela nos foi dada por Deus à guisa de gênio protetor: exatamente o princípio que apresentamos como presidindo no vértice do corpo, e que nos transporta da terra para nossa afinidade celestial, por não sermos planta de raízes terrenas, porém celestes, o que afirmamos com maior convicção, por haver a divindade ligado nossa cabeça a nossa raiz à sede primitiva da alma, deixando, assim, o corpo em posição ereta”. (Platão, Timeu)

Em meu segundo artigo sobre educação, neste blog, defendi que, para sairmos da situação caótica na qual nos encontramos, seria necessário recuperar a realidade, no sentido aplicado pelo filósofo teutoamericano Eric Voegelin: “reconstruir as categorias fundamentais da existência, da experiência, da consciência e da realidade”. Gostaria de apresentar algumas considerações para essa proposta, a começar pela recuperação do fundamento da existência. Os demais itens virão em artigos futuros.

Semana passada, assisti a dois vídeos estarrecedores, que demonstram, exatamente, em perfeição apodítica, a manifestação daquilo que Voegelin, ao longo de suas obras, chama de Segunda Realidade: “a imagem da realidade criada pelos homens quando em estado de alienação”; estado de alguém que “perde a razão e o espírito como aquelas partes da realidade que o ajudam a ordenar-lhe a existência”. (Reflexões autobiográficas, É Realizações).

O primeiro vídeo é da professora Márcia Tiburi, no culto lulista de militantes acampados em Curitiba. A extrema-feminista de extrema-esquerda inicia seu discurso dizendo: “Boa tarde a todas e a todos e a todes” – indicando, desde o início, que não se pronunciaria em língua portuguesa. Daí veio o delírio – cometido por quase 30 minutos, mas do qual só pincei o início:

“Nós o amamos [ao Lula], o amamos com um tesão saudável, com muito amor no coração, com um amor cheio de todas as religiões, de todas as sexualidades, de todos os gêneros, de todas as raças, cheio de libertação… E, infelizmente, essa galera que o prendeu também o ama; mas o ama de um ódio ressentido, e isso dá um tesão – gente, cês não fazem ideia… Quando um fascista fica com tesão por uma pessoa, dá mal: dá estupro, dá vilipêndio, dá conspurcação, dá prisão injusta, sem crime. Isso já tinha acontecido com a Dilma Rousseff, quando começou esse golpe antes de 2016, quando tudo começou e vocês já sabiam onde a coisa ia; e vocês sabem que o lance é sádico! Então, nós amamos o Lula com nossa saúde, com a nossa inteligência, com a nossa vontade de mudar o Brasil; a gente ama o Lula com o nosso respeito à Constituição, como o respeito à justiça, com o respeito à dignidade humana, com o respeito à presunção de inocência. E, essa galera ama o presidente Lula, também. Mas ama com ódio. É um negócio que na psicanálise a gente chama de amor-ódio… É verdade, gente! Pior é que é muito triste, porque é um amor misturado com ódio, que, em termos técnicos a gente chama de sadomasoquismo. Eles ‘tão, assim, se locupletando nesse negócio delirante em torno do presidente, todo mundo querendo ser tocado pelo presidente, visto pelo presidente para encontrar um lugar ao sol”.

Ainda que eu fosse contra a prisão de Luiz Inácio Lula da Silva, jamais seria a favor de tal discurso, pois não se trata de algo dito com vistas à realidade. Não se trata de uma contestação argumentativa, jurídica, moral ou mesmo filosófica a respeito da prisão do ex-presidente – condenado em praticamente todas as instâncias necessárias para que se faça cumprir a lei e a justiça –, mas tão somente um amontoado de clichês ideológicos que intentam somente falar ao coração da militância, produzir um efeito catártico, de purgação das emoções. E dizer as maiores absurdidades em pretenso linguajar acadêmico – “é isso que em psicologia…”, “que em termos técnicos quer dizer…” – também não resolve. Não há nada real no que diz Tiburi, exceto a prisão de Lula; o resto é puro delírio – e não é preciso ser um expert para perceber. Seus ouvintes não foram convidados a ouvir um depoimento, mas incitados à irracionalidade emotiva dos instintos. Curiosamente, o modo como Tiburi acusa seus inimigos, de estarem se locupletando num “negócio delirante em torno do presidente”, é, sem tirar nem pôr, o que está ocorrendo naquele acampamento – pois todo mundo ali não quer outra coisa senão “ser tocado pelo presidente, visto pelo presidente para encontrar um lugar ao sol”.

Um espetáculo grotesco.

O outro vídeo não é menos espantoso. Trata-se da entrevista do advogado Pedro Estevam Serrano ao comentarista esportivo Juca Kfouri – que, como bom ex-militante da ALN, mistura suas paixões políticas ao seu ofício jornalístico. Kfouri apresenta o programa Entre Vistas no canal TVT, emissora ligada ao Sindicato dos Metalúrgicos de SBC. Ele afirma tratar-se de “um programa de entrevistas sobre o que está acontecendo no dia a dia do Brasil”. Mas, pelo local de produção e pelo apresentador, não é preciso dizer qual o teor das entrevistas e nem a perspectiva política dos convidados.

Em sua participação, Serrano, que é professor de Direito Constitucional da PUC-SP, sócio do badalado escritório Teixeira Ferreira e Serrano Advogados Associados e ex-advogado da Odebrecht – conhecido por um suspeitíssimo encontro em 2015 com José Eduardo Cardozo, à época ministro da Justiça, quando as coisas começaram a esquentar para a construtora –, disse coisas tão surreais quanto Márcia Tiburi, com direito a arroubos e gesticulações cheias daquela teatralidade que só vemos nos advogados de filmes:

“É isso que nós estamos vivendo, nós temos que entender: a estrutura de exceção é extremamente injusta e persecutória! E persegue o Lula por uma série de características: é o presidente pobre; pela questão étnica, é nordestino – o Sul não gosta de nordestino –, essa é uma realidade; há preconceito contra nordestino no Sul e Sudeste do país, ele é vítima disso, porque é só julgado por brancos do Sul e Sudeste. Vejam, isso tudo conflui! O inimigo é étnico, o inimigo tem uma classe social, o inimigo representa a perspectiva de perder o controle – nós estamos num país no qual 20% da população, se muito, é branca, vive com medo constante de perder o controle e os privilégios que tem! […] Esse elemento nós temos que observar, a única chance que civilidade que nós tivemos na nossa história, foram dois momentos: a Constituição de 88 e esse período do governo Lula, que obedeceu a Constituição de 88. […] O caso do Lula não é o Lula, estamos tratando da nossa alma como sociedade; do nosso espírito, da nossa história, das nossas profundas contradições, do nosso lado sombrio; é isso que nós estamos lidando nesse caso”.

Inacreditável, não? Pois é. Essa verborreia exaltada fez Juca Kfouri terminar o programa com a voz embargada, olhos marejados, como se tivesse presenciado a abertura dos selos do Apocalipse.

Mas qual a característica fundamental desses dois discursos? As emoções afloradas? Certamente. Mas, fora a constatação de estarmos no terreno daquilo que o filósofo romeno Vladimir Tismaneanu chamou de Religião Política (Do Comunismo, Vide Editorial), do culto messiânico, há algo mais profundo nesse comportamento, algo mais fundamental e perigoso: a perda da realidade. Tiburi e Serrano estão em plena alucinação psicótica, pois o que dizem não corresponde à realidade dos fatos. Mas também não são conjecturas, são delírios. São discursos proferidos não na realidade objetiva, mas numa pseudorrealidade, criada com “precipitados psíquicos de antigas relações com ela [a objetiva]”, nas palavras de ninguém menos que Sigmund Freud. O pai da psicanálise, que percebe a manifestação das neuroses e psicoses em duas etapas, diz, em seu artigo A perda da realidade na neurose e na psicose, publicado em 1924, que na psicose a função da primeira etapa é arrastar “o ego [o freio moral da realidade] para longe”. E o segundo passo “destina-se a reparar a perda da realidade; contudo, não às expensas de uma restrição com a realidade – senão de outra maneira, mais autocrática, pela criação de uma nova realidade que não levanta mais as mesmas objeções que a antiga, que foi abandonada. […] Assim, a psicose também depara com a tarefa de conseguir para si própria percepções de um tipo que corresponda à nova realidade, e isso muito radicalmente se efetua mediante a alucinação”.

A descrição de Freud corresponde ao que o filósofo e psiquiatra Karl Jaspers, em seu monumental Psicopatologia Geral (Atheneu), chama de delírio, cuja característica principal é “a perda da consciência do ser e da existência […], uma transformação na consciência global da realidade”. Tiburi e Serrano estão a produzir ideias delirantes, fruto de seu falso juízo da realidade. São ideias “que remontam, na fonte, uma vivência patológica primária ou exigem, como pressuposição de sua explicação, a transformação da personalidade. […] As ideias delirantes são produtos de cristalização, de forma alguma centralizados num ponto, provenientes de vivências delirantes confusas, de autorreferências difusas, enigmáticas”.

Estes curiosos diagnósticos de Freud e Jaspers vão ao encontro das reflexões filosóficas de Eric Voegelin sobre os movimentos ideológicos do século 20. Para ele, os ideólogos são pessoas que perderam o contato com a realidade e, a partir de sua alienação, constroem sistemas que não correspondem a ela, mas a “segundas realidades”. Tal perda se dá pela recusa da tensão existencial em direção ao fundamento divino do ser. Diz ele, em seu Anamnese (É Realizações):

“Quando uma pessoa se recusa a viver na tensão existencial em direção ao fundamento, ou se ela se rebela contra o fundamento, recusando-se a participar na realidade e, assim, a experimentar sua própria realidade como homem, não é o ‘mundo’ que é mudado por isso; ao invés, é ela que perde o contato com a realidade e sofre uma perda de conteúdo da realidade em relação à sua própria pessoa. No entanto, a esse respeito, ela não cessa de ser homem; e já que sua consciência continua a projetar uma forma de realidade, ela gerará imagens substitutas de realidade, a fim de obter ordem e direção para sua existência e ações no mundo. Em consequência, ele vive numa ‘segunda realidade’”.

Esse não é um fenômeno novo e nem circunscrito a Tiburi e Serrano. Praticamente todo o ambiente acadêmico é dominado por gente assim. A imensa maioria dos intelectuais acadêmicos e midiáticos da atualidade é de ideólogos a serviço de uma utopia inconsequente que só faz mal ao mundo – e cada vez mais mal. Essa visão reducionista da existência, por exemplo, ao caráter meramente econômico – “toda a história da humanidade tem sido uma história de lutas de classes” –, cuja necessidade mais urgente seria fazer justiça social, reparar os desmandos da burguesia e converter a tensão espiritual em direção do fundamento em consciência de classe (livrando a humanidade do ópio do povo), só teve um efeito concreto: morte – física e espiritual.

Ignorar a origem e o destino humanos, reduzir todas as nossas aspirações às conquistas materiais, enxergar os complexos processos civilizatórios como meras disputas por poder econômico e tentar corrigi-los por meio de revoluções… Todas essas sandices ignoram que a vida é um dom, que o ser humano é imperfeito e deve buscar, humildemente, ascender espiritualmente em direção ao Verdadeiro, ao Belo e ao Bem. E, para não precisarmos entrar no campo da religião propriamente dita (não é esse o nosso propósito), ouçamos os filósofos antigos, pois, como disse Voegelin: “A melhor forma de retomar o contato com a realidade é recorrer a pensadores do passado que ainda não a tinham perdido ou estavam empenhados em recuperá-la”.

Foi Sócrates que, superando a perspectiva dos Jônios – que se afastaram dos Mitos buscando uma origem material para todas as coisas –, volta-se à reflexão sobre a vida como uma dádiva dos deuses. Num diálogo com o sofista Eutidemo, registrado por Xenofonte em seu Memoráveis (Universidade de Coimbra), demonstra a necessidade de respeitarmos, prudentemente, a vida e os favores da providência divina. Após discorrer sobre como os deuses nos provêm com o dia e a noite, com animais e vegetais para nossa alimentação, com a água, o fogo, a percepção estética e, por fim, a “capacidade de raciocinar”, conclui:

“Até tu hás de perceber que eu digo a verdade, se não estiveres à espera de ver a aparência física dos deuses, e te conformares, contemplando as suas obras, com os adorar e os honrar. Pensa que os próprios deuses nos indicam esse caminho, pois, quando nos oferecem os seus benefícios, fazem-no sem se mostrar aos nossos olhos, mas também aquele que ordena e governa todo o universo, no qual reside toda a beleza e toda a bondade, e que, para nosso interesse, as mantém intactas, saudáveis e sem velhice, servindo-nos sem qualquer falha mais rapidamente que o próprio pensamento, este deus manifesta-se como o realizador das maiores obras, mas administra-as sem que as possamos ver […] E mais, até a alma do homem, que participa do divino mais do que qualquer outra das faculdades humanas, é evidente que reina em nós, mas ninguém pode vê-la. Refletindo sobre todos estes assuntos, é preciso não desprezar o que não se vê e, antes, reconhecendo nos seus sinais o seu poder, é preciso honrar a divindade”.

Posteriormente, Platão, Aristóteles, os filósofos helenísticos, toda a Patrística (evidentemente) e a Idade Média seguiram os passos de Sócrates e, com algumas raras exceções ao longo da história, concordavam que o ser humano não é causa de si mesmo. Mas a investida moderna contra a metafísica, impulsionada, em grande medida, por Kant, e levada a termo pelos grandes influenciadores do pensamento acadêmico contemporâneo – tais como Nietzsche, Sartre, Foucault e, claro, Marx –, fez com que todo o currículo das Humanidades sofresse um golpe de morte. A metafísica foi praticamente expulsa da Academia; e mesmo os estudos teológicos são, cada vez mais, meras análises socioantropológicas.

Só há uma maneira de “recuperar o fundamento da existência”: reconhecendo, inclusive academicamente, que toda especulação que rejeita indiscriminadamente a metafísica e os pressupostos que apontam para um plano divino da existência deve ser vista como uma maneira de ver o mundo e não a única. Assim, recuperando a prudência do debate e a humildade de nossas pretensões, estaremos no caminho certo para resgatar a Educação no Brasil.

Originalmente - Gazeta do Povo

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