Luciano Trigo lança o livro - Guerra de Narrativas.

O jornalista e escritor Luciano Trigo, autor de um blog publicado no G1, acaba de lançar o livro "Guerra de narrativas – A crise política e a luta pelo controle do imaginário" (Globo Livros).

Sobre o termo "guerra" no título da obra, ele explica: "A sociedade brasileira foi dividida e vive hoje em um estado de conflito permanente. Nos últimos anos, amigos romperam relações e parentes deixaram de se falar, envenenados pela atmosfera de 'nós' contra 'eles' que domina todos os aspectos da vida cotidiana".

Em entrevista ao G1, Trigo continua: "Esse processo já ultrapassou os limites do debate político racional e da saudável disputa partidária. Seja qual for o assunto, o debate é contaminado por uma lógica maniqueísta e intolerante: quem pensa de forma diferente é imediatamente identificado como um inimigo a excluir e abater".

Leia, abaixo, a entrevista com o escritor:

G1 – No livro, você escreve: 'Agora são 'todos contra todos': minorias contra minorias, gêneros contra gêneros, raças contra raças, sexualidades contra sexualidades, esquerdas contra esquerdas, direitas contra direitas, as elites contra as elites, o povo contra o povo. E não adianta tentar ficar de fora dessa guerra, porque ela invadiu todos os espaços da existência’. Por que usa o termo 'guerra'?

Luciano Trigo – Porque é mesmo de uma guerra que se trata. A sociedade brasileira foi dividida e vive hoje em um estado de conflito permanente. Nos últimos anos, amigos romperam relações e parentes deixaram de se falar, envenenados pela atmosfera de "nós" contra "eles" que domina todos os aspectos da vida cotidiana. Algo que nos unia como brasileiros se perdeu. Não temos mais valores compartilhados, que são fundamentais para o convívio civilizado em qualquer nação.

Esse processo já ultrapassou os limites do debate político racional e da saudável disputa partidária. Seja qual for o assunto, o debate é contaminado por uma lógica maniqueísta e intolerante: quem pensa de forma diferente é imediatamente identificado como um inimigo a excluir e abater. O tempo inteiro, campos em confronto tentam impor uns aos outros as suas próprias narrativas sobre o que está acontecendo no Brasil.

G1 – Acredita que estaríamos nessa 'guerra', como você diz, se não existissem as redes sociais?

Luciano Trigo – As redes sociais seguramente potencializaram esse fenômeno. Hoje, por exemplo, um grupo pode se mobilizar rapidamente no WhatsApp para tentar derrubar um perfil em uma rede social ou, pior ainda, destruir a reputação de um desafeto pessoal ou de um adversário político com denúncias irresponsáveis. Isso é um horror.

Mas a guerra de narrativas não nasceu nas redes sociais, ela é fruto de um longo processo de disputa por hegemonia política que não se deu apenas no debate propriamente partidário, mas também na forma como se impõem determinadas agendas em parte da mídia e nas salas de aula das escolas e universidades com partido. As redes sociais são apenas veículos, muito eficazes, para essa disputa por poder. Elas refletem um fenômeno social mais amplo e complexo.

G1 – Você escreve no 1º capítulo: 'Hoje, se há algo que ainda une os brasileiros é o sentimento generalizado de que alguma coisa deu muito errado com o nosso país'. Isso é exclusividade do Brasil mesmo? Há vários livros sendo lançados, aqui e lá fora, que falam sobre o desmoronamento da democracia liberal ou representativa.

Luciano Trigo – Eu trato do caso brasileiro em um período particular, mas não afirmo que esse sentimento de colapso é exclusividade do Brasil. Na verdade eu acho que esse debate sobre a crise da democracia representativa também é, ele próprio, objeto de uma guerra de narrativas.

O debate é saudável no sentido de sinalizar, por exemplo, que eleições livres não bastam para caracterizar uma democracia, que as instituições precisam ser permanentemente aprimoradas, que os políticos e agentes públicos precisam ser atentamente vigiados pelos cidadãos.

Mas há também quem se aproveite dessa crise e desse mal estar civilizatório para sabotar de vez as regras da democracia e substituí-las por mecanismos que tendem a reforçar o poder daqueles que já o detêm. Ou seja, falando em nome da democracia e da tolerância, corroem a democracia e praticam a intolerância.

É o que acontece na Venezuela, com o aparelhamento da Justiça e das forças armadas: segundo a narrativa do campo no poder, trata-se de um governo democrático que luta pela justiça social, fazendo uso de plebiscitos e conselhos populares; na vida real, adversários políticos são perseguidos e presos, e a população vive um cotidiano de fome, escassez e medo.

G1 – Você também escreve: 'Nunca se defendeu tanto a tolerância; nunca se praticou tanto a intolerância. Nunca se pediu tanto amor, por favor; nunca se sentiu tanto ódio. Os leitores mais jovens podem não acreditar, mas o Brasil não era assim, não'. A que época você se refere ao falar desse Brasil que era menos dado a praticar intolerância e a sentir ódio?

Luciano Trigo – Da redemocratização até a chegada do PT ao poder, falar mal do governo era quase um esporte nacional. Parentes e amigos votavam em partidos e candidatos diferentes, sem que brigassem nem rompessem relações por causa de política, muito menos por causa de políticos.

Com a eleição de Lula, subitamente passou a pegar mal falar mal do governo: parecia quase um imperativo moral defender incondicionalmente o PT, nos acertos e nos erros, e quem não o fazia pagava um preço. Para evitar a exclusão social ou a perseguição no ambiente de trabalho, muita gente preferia ficar quieta.

Produziu-se então a narrativa do "nunca antes na História do Brasil", que transformou adversários políticos em gente que defendia a volta da escravidão e não queria que pobre viajasse de avião, nem que seus filhos estudassem na mesma escola do filho da empregada.

Por incrível que pareça, ancorada no relativo sucesso das políticas de redução da desigualdade e nas conquistas sociais dos governos Lula, que foram reais, essa narrativa caricata e maniqueísta "colou", sobretudo entre os mais jovens, que não conheceram outro Brasil que não fosse aquele vendido por seus professores, em geral alinhados com o PT. Quem tinha 10 anos quando Lula foi eleito pela primeira vez tinha 24 quando Dilma caiu, ou seja, chegou à vida adulta só tendo um contato de segunda mão com o Brasil pré-PT.

A intolerância e o preconceito sempre existiram no Brasil, e é claro que precisam ser enfaticamente abominados e combatidos. Mas não existia ódio de classe, raça e gênero tal como existe hoje, nem vitimização, nem essa mania de apontar o dedo para o outro, que foi cultivada na sociedade brasileira ao longo do ciclo lulopetista – até chegarmos ao ponto em que uma jovem branca é perseguida nas redes sociais por postar uma foto usando turbante, por "apropriação cultural", mesmo que ela use o turbante por estar fazendo tratamento quimioterápico.

Hoje é preciso medir as palavras o tempo inteiro, pois sempre se corre o risco de ofender alguém; é preciso pensar duas vezes antes de elogiar uma mulher, pois se corre o risco de ser acusado de assédio. Ontem mesmo li no jornal uma matéria criticando o fato de os bolsos das calças jeans femininas serem menores que os bolsos das calças masculinas, pois isso reflete a desigualdade de gênero que precisa ser combatida. Esse tipo de patrulha, que beira o ridículo, não existia antes dos governos do PT.

G1 – Na página 44, você escreve: 'O regime militar, com a miopia característica dos regimes autoritários (de direita e de esquerda), não percebeu — ou não avaliou direito as consequências disso — que o inimigo mais poderoso a combater não estava entrincheirado na guerrilha do Araguaia, nem mesmo nos focos urbanos de luta armada, mas nas redações de jornais e nas salas de aula de escolas e universidades públicas e privadas, ocupadas sem qualquer dificuldade por aqueles que seriam os autores dessa narrativa triunfante — e que, mais tarde, embarcariam, quase todos, na adesão incondicional ao lulopetismo'. Onde estariam, hoje em dia, esses que você chama de 'autores dessa narrativa triunfante'?

Luciano Trigo – São aqueles que, negando todas as evidências e as toneladas de provas produzidas pela Operação Lava-Jato, insistem na reiteração da narrativa de que Dilma foi vítima de um golpe das elites e de que Lula é a alma mais inocente do Brasil.

Ora, as verdadeiras elites sempre apoiaram os governos do PT e foram generosamente recompensadas por esse apoio, "por dentro" e "por fora". Banqueiros e empreiteiros só saltaram do barco quando ficou claro que o país estava caminhando para o colapso econômico e que Dilma tinha perdido completamente as condições de governar o país.

Mas a maioria dos intelectuais, professores e artistas finge até hoje que o impeachment foi um golpe das elites: eles continuam encenando o papel de heróis da resistência e de justiceiros sociais, porque esse papel ainda hoje traz rendimentos materiais e simbólicos – e fazendo de conta que ainda vivemos o contexto da ditadura militar. Ou seja, continuam lutando contra uma ditadura que acabou há mais de 30 anos, ao mesmo tempo que apoiam ditaduras em países vizinhos, estas sim reais, que estão perseguindo, torturando e matando gente neste exato momento, não há 30 anos.

G1 – Você escreve sobre a 'importância que a cooptação da classe artística – e dos estudantes e de setores da mídia – tem para o êxito de qualquer projeto de poder e para a consolidação de um novo pensamento hegemônico'. Falando de música, os gêneros mais ouvidos no Brasil são funk e sertanejo, cujos artistas não têm um discurso politizado – ao menos não como tinham nomes da MPB décadas atrás. Na sua opinião, os músicos continuam contribuindo mesmo para esse 'controle do imaginário da sociedade'? É que, em outro trecho, você escreve: 'Fato: a classe artística brasileira encontra-se em total descompasso com o povo — e acha que quem está errado é o povo (...)'.

Luciano Trigo – Os jovens do Brasil que ouvem funk e sertanejo e têm um discurso pouco politizado são a maioria silenciosa. Mas os jovens da classe falante, aqueles que se formam nos cursos de ciências humanas das universidades públicas e privadas dominadas há décadas por professores de esquerda, estão alinhados com o discurso da elite da música popular, com aqueles artistas que durante décadas exerceram um quase-monopólio da fala: Chico Buarque, Caetano Veloso etc.

Esses jovens, de diferentes classes sociais, se tornam reprodutores, justamente, da narrativa simbólica que divide o Brasil entre, de um lado, a "galera do bem" alinhada com o PT e o discurso de que houve um golpe; e, de outro lado, os "fascistas" que desejam o retrocesso e odeiam os pobres.

O problema é que essa narrativa que entende a política como uma disputa entre o bem e o mal se exauriu. E uma parcela imensa da população que se viu durante anos constrangida ao silêncio resolveu se manifestar. Esses brasileiros comuns não aceitam a teses esdrúxula de que existem uma "corrupção do bem" e uma "corrupção do mal". É com esses brasileiros, indiferentes a ideologias, que os intelectuais e artistas estão em crescente descompasso.

G1 – Depois de lembrar as polêmicas sobre a mostra 'Queermuseu' e a performance 'La Bête', você escreve: 'Os brasileiros rejeitam todas as pautas associadas à agenda dita progressista: o aborto, a liberação das drogas, o poliamor etc.; os brasileiros rejeitam qualquer tentativa de minar o modelo familiar tradicional; mas, acima de tudo, os brasileiros não aceitam que se mexa com crianças (...). A população reagiu. Se as redes sociais são um termômetro da sociedade — e são, até certo ponto —, o que elas demonstraram de forma cabal é que os brasileiros não iam mais engolir passivamente as pautas ditadas pelo campo dito progressista'. Mas, depois, você escreve: 'Em um fenômeno que pode ser chamado de provincianismo digital, muitas pessoas acreditam sinceramente que a timeline de seu Facebook reflete a realidade do país. São essas pessoas que ficam escandalizadas quando veem um deputado na tv dedicar seu voto à família (que horror!)'. Quem está ganhando, afinal, a guerra de narrativas das redes e das ruas?

Luciano Trigo – As redes e as ruas não têm mais dono. Esses espaços foram durante muito tempo exclusivos do campo lulopetista, mas isso começou a mudar com as manifestações de junho de 2013.

No livro "Guerra de narrativas", eu faço uma interpretação muito particular das verdadeiras motivações das Jornadas de Junho, que não cabe detalhar aqui. O que importa é ressaltar que ali começou a desmoronar a ficção de um consenso em torno do êxito dos governos do PT. Uma imensa insatisfação represada veio à tona, e os protestos saíram de controle. Foi naquele momento que começou o declínio inexorável do ciclo do PT no poder. A divisão da sociedade entre "nós" e "eles" passou a se voltar contra quem promoveu essa divisão. De repente, percebeu-se que a fachada de um país cor-de-rosa escondia um cotidiano de serviços públicos de péssima qualidade e de dificuldades materiais que já começavam a afetar os mais pobres.

O Brasil real tomou conta das ruas, exigindo mudanças – o que, aliado a outros fatores como a rápida desagregação da base parlamentar de Dilma, a crise econômica cada vez pior e a própria Operação Lava-Jato, que revelava dia após dia o lado podre dos governos autointitulados progressistas, resultou no impeachment de Dilma Rousseff.

Ou seja, o campo lulopetista perdeu a guerra nas ruas, no Legislativo e no Judiciário, mas optou por se aferrar à guerra das narrativas, pois é na narrativa que esse campo ainda preserva algum poder – na narrativa ainda hoje reproduzida nas escolas e universidades e na fala dos artistas e intelectuais formadores de opinião. Meu livro só vai até o final de 2016, e é claro que de lá para cá muita coisa aconteceu.

Hoje percebo pouca disposição da população de ocupar as ruas, mas nas redes sociais a guerra de narrativas continua forte: basta olhar a área de comentários de qualquer reportagem controversa nos sites de notícias para constatar isso. É um triste resultado de todo esse processo analisado no meu livro o fato de que os líderes das pesquisas para a eleição que se aproxima sejam dois políticos populistas e messiânicos, de esquerda e de direita, cujo laço com os eleitores é de natureza emocional, não racional – sendo que um deles está na prisão, condenado por corrupção e lavagem de dinheiro.

G1 – Na página 264, você escreve 'que os mecanismos de massacre virtual que esses artistas e intelectuais associados ao (e generosamente recompensados pelo) campo no poder usaram ao longo dos anos para calar e exterminar simbolicamente todos que fizessem qualquer questionamento crítico começaram a se voltar contra eles'. E ainda: 'Talvez assim finalmente entendam que foi nisso que transformaram o Brasil: num círculo vicioso de ódio, ressentimento e rancor. E, aparentemente, agora o pêndulo vai ter que completar seu ciclo até que voltemos a ser um país normal'. Como você descreveria esse 'país normal'? Quando o Brasil teria deixado de ser um 'país normal'?

Luciano Trigo – Justamente, um país onde amigos e parentes não rompam relações por causa de política e ideologia.

Um país onde os estudantes voltem a aprender que a cada direito corresponde um dever.

Um país onde as pessoas entendam que dinheiro não dá em árvore, e que o Estado não tem condições de bancar desejos pessoais que passaram a ser entendidos como direitos.

Um país onde as pessoas fiquem mais indignadas com a morte de um policial do que com a morte de um bandido.

Um país onde o cidadão comum entenda que não existem salvadores da pátria, e que perceba que o Brasil só terá alguma chance de se afirmar como uma nação próspera e socialmente justa quando investir pesadamente na educação e no trabalho. Não existem atalhos.

Um país no qual um quinto da população vive pendurado em uma mesada do governo e onde outro quinto é formado por jovens que não trabalham nem estudam – os "nem-nem" – não tem a menor possibilidade de dar certo.

G1 – O termo 'narrativas' é bastante comum em 'textões' das redes sociais, mas talvez soe um abstrato para quem não participa ativamente de debates virtuais. No contexto da discussão proposta no livro, 'narrativas' quer dizer o quê?

Luciano Trigo – Narrativas são enredos e interpretações do mundo nas quais acreditamos e às quais vinculamos nossa própria identidade social. Esses enredos determinam qual recorte da realidade determinará as nossas opiniões e as nossas escolhas, mas também as nossas relações.

Então, por exemplo, para um eleitor do PT a narrativa do Brasil que prevalece é a das conquistas sociais dos governos Lula. Para um opositor do PT prevalece a narrativa dos escândalos de corrupção e da incompetência na gestão.

O dado curioso aqui é que as duas narrativas são verdadeiras, elas não são excludentes: houve distribuição de renda e redução da miséria. E houve também a montagem de um sofisticado esquema de corrupção criado para financiar um projeto criminoso de perpetuação no poder. Sendo as duas narrativas verdadeiras, é um contra-senso que uma seja usada como argumento contra a outra.

G1 – O subtítulo do livro é 'A crise política e a luta pelo controle do imaginário'. Você está se referindo a um único 'imaginário' ou na verdade são vários, considerando que existe uma 'guerra de narrativas' – assim, no plural?

Luciano Trigo – No final das contas prevalecerá um imaginário só – aquele que determinará como os livros de História do futuro reconstituirão e contarão os anos de crise política que meu livro analisa e retrata. As gerações futuras tomarão contato com essa história que ainda estamos vivendo por meio da narrativa que triunfar. O resultado dessa luta ainda é incerto.

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