O SISTEMA SOVIÉTICO DE METAS NAS EMPRESAS:

Por Renato Rabelo
VISLUMBRANDO O MONSTRO

Quem nunca ouviu falar em metas no mundo corporativo? As metas NÃO são uma novidade ou uma moda passageira nos processos produtivos – elas vieram mesmo para ficar. Mas o que, de verdade, é a temida “meta”?

A palavra “meta”, no sentido em que nos referimos hoje, vem da Roma Antiga e significa “marco”. Nos circos romanos existiam pistas de corrida de cavalos e de carros (bigas) que formavam circuitos. E o ponto da virada para os competidores era a meta. A meta era um monumento em formato de cone que ficava nas extremidades da espinha central de um circo romano.
A imagem é uma representação artística do Circo de Maxêncio.
Grifo nosso.
As metas serviam para que os competidores corressem o mais rápido possível para o seu objetivo e só diminuíssem a velocidade para fazer a curva. Sem a meta, o corredor teria que ter mais cuidado para não passar direto na curva e acabar sofrendo um acidente. E, em uma competição como esta, ter mais cuidado significa ser mais lento. E mais lentidão leva não só à derrota como ao desinteresse do público que ia ao circo. Então a meta era uma peça essencial para manter os cavalos rápidos e os competidores inteiros.
“Meta Sudans” é um monumento turístico em Roma que também
funcionavacomo uma fonte. Imagem do livro
“Rossi's Romanae Magnitudinis Monumenta” (1699).
Mas na nossa metáfora os competidores não são os trabalhadores. Os trabalhadores são os cavalos. Os competidores são os líderes das empresas no show. Então, quando eles marcam uma meta, eles sabem exatamente quando começar a chicotear e quando começar a pegar mais leve com o seu transporte.

Mas e se a meta estivesse em outra cidade, a dezenas de quilômetros de distância? E se ela fosse distante demais de alcançar? Nós sabemos que no maior circo de Roma, o Circus Maximus, a distância entre as metas era de apenas 621 metros (enquanto no menor, em Géresa, era de 245 metros).

Mesmo sendo animais grandes, que percorrem longas distâncias, os cavalos estavam sendo testados em velocidade máxima, debaixo de grande estresse. Então eles eram tratados com grande cuidado, bem alimentados, treinados com frequência, bem descansados e sempre prontos para o embate pesado em curtas distâncias. Mas será que ainda estaríamos falando das pesadas e prolongadas metas que as empresas cobram de seus trabalhadores?

METAS NO SANTUÁRIO TRABALHISTA – A UNIÃO SOVIÉTICA

As metas existiam para evitar a baixa velocidade, porém elas também existiam para evitar a cobrança descontrolada dos competidores sobre os seus animais. Mas as metas que nós ouvimos falar todos os dias não são assim. As reclamações de que as cobranças só aumentam enquanto as empresas não dão ferramentas para os seus funcionários trabalharem só crescem em nosso país. Então vamos nos transportar para outro lugar. Vamos tentar fazer um contraste para clarear a nossa mente. Será que algo assim aconteceria na Meca operária, a antiga União Soviética? Vejamos dois casos históricos da aplicação das metas sendo realizadas pelos comunistas.

O primeiro caso que vamos olhar rapidamente é o da construção do Canal Mar Branco–Mar Báltico, de 227 quilômetros, que começou em 1931. O Conselho de Trabalho e Defesa soviético estabeleceu a meta de 20 meses para a sua construção. Quase duzentos mil prisioneiros forneceram mão-de-obra escrava para a obra, além da mão-de-obra já contratada. Toda a obra foi supervisionada pela polícia secreta para garantir que a meta fosse cumprida.

Sem recursos, sem meios mecanizados, cortando florestas, destruindo rochas, nivelando corredeiras e cachoeiras, a grande via hídrica foi aberta dentro do prazo, em 1933. A União Soviética proclamou a sua vitória como uma prova de que o seu sistema de trabalho por metas e trabalho escravo funcionava. Um livro de 600 páginas foi escrito para falar sobre este feito.

Faltou apenas um pequeno detalhe nos anúncios: cerca de 60 mil pessoas morreram durante a obra. Em boa parte dos casos, morreram por exaustão. Eles trabalharam de maneira forçada até o seu coração literalmente parar. Outros morreram de fome e de frio. Os doentes e feridos não estão neste cálculo. Hoje o canal não é utilizado comercialmente porque a profundidade é baixa e não permite a passagem de grandes embarcações.
Imagem dos trabalhadores e prisioneiros construindo o referido canal, em 1932. 



O segundo caso é o que está sendo mostrado na recém-lançada minissérie da HBO, Chernobyl, que retrata o acidente nuclear que é considerado, ainda hoje, o maior problema de saúde pública do mundo.

Um reator da usina nuclear da cidade de Pripyat, na atual Ucrânia, passava por testes de segurança em uma madrugada de 1986. O teste simulava uma queda de energia na estação, com hastes injetando combustível radioativo enquanto alguns produtos absorviam e controlavam as reações. Operando em baixo nível de risco, o teste estava demorando para mostrar os resultados e bater a bendita meta do dia.

Foi então que a gerência decidiu acelerar as coisas, retirando a alimentação de produtos controladores, aumentando a potência do reator e torcendo para o melhor acontecer. Pelo rápido aumento da potência, as turbinas do gerador bombearam mais água do que o recomendável, o que fez os operadores cortarem a energia da turbina e diminuir a quantidade de água no sistema. Na pressa para terminar a tarefa, a turbina foi desconectada do reator, interrompendo o fluxo de água (que também moderava o combustível), deixando pouca água em contato com o calor infernal da radiação.

A água superaquecida virou um vapor de alta pressão sobre a temperatura solar do combustível, que explodiu o sistema e fez a laje da usina voar. O rompimento das paredes do reator misturou a grafite moderadora com o combustível. Assustados com o aumento repentino de potência, houve uma ordem imediata de colocar todos os controladores de uma só vez no reator – mas era tarde demais.

A grafite incendiou, entortou as hastes alimentadoras (que não se encaixaram mais no sistema) e a coluna de fumaça radioativa implacável espalhou íons de césio-134, iodo-137 e estrôncio-90 durante 9 dias por toda a Europa. A chuva fez o trabalho de armazenar a radiação em quase todo o solo europeu.
Imagem da usina de Pripyat momentos após da explosão. 
O acidente de Chernobil, como ficou conhecido, aconteceu em função de muitos fatores. Projeto mal construído, contenção barata, pressa em entregar os resultados, mais pressa ainda dos líderes em jogar a culpa do ocorrido nos operadores (ao invés de buscar saber quais eram as falhas reais que tinham acontecido), acobertamento do problema (que atrasou medidas adequadas de evacuação e de primeiros socorros), falta de medicamentos para o caso de um imprevisto – um verdadeiro desastre de gestão.

O prejuízo com este acidente é pago até hoje. Trilhões “derreteram” graças à mão fechada para cobrir custos com segurança e para bater nos funcionários por metas surreais. Isto sem contar o prejuízo humano (incontável, graças, principalmente, à destruição de relatórios sobre o ocorrido). O cavalo encontrou uma muralha dura quando estava em alta velocidade... e o competidor também.

METAS NO EXÉRCITO DO IMPÉRIO ROMANO

Para que o nosso querido país saia da mania soviética de cobrar metas sem dar o suporte necessário ao seu trabalhador é importante que vejamos um exemplo de sucesso para nos inspirar a acertar na aplicação de metas daqui para frente. E um exemplo rápido pode ser encontrado no exército mais bem sucedido dos tempos antigos.

O soldado romano raso era o mais bem equipado do mundo. Todo o seu equipamento era provido pelo seu contratante. As divisões mais jovens eram treinadas para ir para a linha de frente, descarregar a sua energia cega e adquirir know how. Os mais velhos, experientes e habilidosos, orientavam e, quando necessário, protegiam os mais novos em uma retirada. Além disto, 20% do pessoal usado nas batalhas era formado por não-combatentes que proviam ajuda logística, para que os soldados só tivessem que pensar em lutar.

Cada soldado carregava o seu próprio equipamento ao invés de usar um sistema coletivo de transporte que aumentava o tempo para o início dos serviços. Todos eram bem alimentados, tinham cuidados médicos, eram pagos e divididos em pelotões variados para descansar em revezamento. Tudo era preparado para que pudessem aguentar a hora da cobrança na batalha. Tudo era feito para diminuir o seu risco em combate e para manter o moral das tropas alto.
Ilustração de soldado romano equipado 
Se os romanos tratavam bem os cavalos dos circos, eles também tratavam bem os seus soldados. Os inventores da meta sabiam bem como usar a sua ferramenta de gestão sem quebrar os seus colaboradores e sem romper limites de segurança tentando alcançar as estrelas. Espero que, depois deste pequeno artigo, os líderes do nosso país pensem duas vezes antes de tentar dar um passo mais largo do que a perna, seguindo o exemplo tirano (e falido) dos soviéticos. 

Até uma próxima oportunidade!






Renato Rabelo é tradutor, ativista político e palestrante.e

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