"Antes da revolução industrial, todo homem criativo era artesão, fosse ele ferreiro, sapateiro, pintor ou poeta. A distinção pós-industrial entre artesão e artista era non-sense: todos esses criadores imprimiam informação sobre objeto, seja ferro, couro, tela ou letra. O objeto guardava a informação expressa nele, era “obra”, e a informação guardada era o “valor” da obra. De maneira que os três conceitos: informação, valor e obra eram inseparáveis. Juntos, constituíam “cultura”. A revolução industrial destruiu tal conceito de “cultura”. Inventou método de produção que permite imprimir informações sobre ferramenta que a imprime sobre objetos. Não mais o ferreiro ou o sapateiro, mas a ferramenta informa ferro e couro, e o homem criador é o ferramenteiro. É a ferramenta que armazena a informação, é a ferramenta que tem o valor, e o objeto apenas transmite a informação da ferramenta. Deixa de ser obra, e seu valor passa a ser de mais em mais baixo. O objeto e o valor vão se separando, e o conceito da “obra”, portanto do trabalho, vai se diluindo. O exemplo mais esclarecedor de tal ruptura do conceito “cultura” é fornecido pela imprensa, invenção precursora da revolução industrial toda. É na máquina impressora, e não no livro impresso, que a informação é armazenada, e o valor está no manuscrito, não no livro lido, que passa a ter valor desprezível. O escritor passa a ser ferramenteiro. A sociedade não se deu conta, na ocasião, do impacto da revolução industrial sobre o processo criador, porque a arte, no sentido restrito, moderno do termo, continuou artesanal, intocada pelos novos métodos de produção, já que estava relegada aos guetos chamados “exposições e museus”.
A segunda revolução industrial que se inicia atualmente constitui uma nova reformulação dos métodos de produção: informações não mais são armazenadas em ferramentas, mas em programas cibernéticos de aparelhos produtores de ferramentas. Doravante é o programador (o analista e compositor de sistemas) e não mais o ferramenteiro quem informa. O aparelho vai imprimir a informação automaticamente sobre ferramentas, as quais, por sua vez, vão imprimi-la automaticamente sobre incontáveis objetos. Surge uma maré montante de gadgets cada vez mais baratos que são desprezíveis por serem estereótipos banais, efêmeros, e portadores de informação diluída: “a cultura das massas”. Cultura das canetas plásticas, das casas pré-fabricadas, das opiniões políticas estereotipadas. Cultura programada. Cultura sem valor porque produzida automaticamente por aparelhos. O valor e a informação são doravante armazenados nas memórias artificiais dos aparelhos. Pois tal maré inflatória de objetos desvalorizados leva ao desinteresse pelos objetos. Tais objetos não mais fascinam. Não interessa mais possuir tais objetos. São objetos de mero consumo. Isto é: são utilizados até que se gaste a informação impressa sobre eles, para depois serem jogados na lata de lixo. O interesse da sociedade vai se desviando dos objetos para a informação, a qual, no entanto, é inacessível aos consumidores. Está guardada na memória dos aparelhos. E é transmitida, diluída, não apenas pelos gadgets, mas, sobretudo, pelos canais efêmeros da comunicação de massa. De maneira que a sociedade do futuro imediato será a sociedade de consumo da informação, mais desinteressada no consumo de “bens”, de objetos. O interesse vai se desviando da economia para a sociologia. Sociedade intersubjetiva: sociedade de Vampyroteuthes.
O homem era, até recentemente, ente que trabalha. Trabalhar é imprimir informação sobre objetos. “Transformar o mundo objetivo”. Doravante serão os aparelhos que farão isto. Os homens deixarão de ser trabalhadores, e passarão a ser programadores e receptores de mensagens. A “moral de produção” desaparecerá simultaneamente com a “moral da propriedade”. Surgirá uma nova moral, a da elaboração e do consumo de mensagens. A existência humana não mais se realizará na luta contra objetos, mas na luta pela preservação e transmissão de informações adquiridas. Os homens deixarão de ser “operários”, e passarão a ser “funcionários de sistemas”. Artistas totais funcionando em um totalitarismo programado. Vampyroteuthes."
Da obra Vampyroteuthis infernalis (lula-vampira-do-inferno), texto em português do próprio Flusser, filósofo checo-brasileiro.
* Biológo e pesquisador.
Com a colaboração de André Maria
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