O homem e a menina









O Homem acordou muito cedo naquele dia, como era seu costume. Noite ainda, ele vestiu suas roupas simples, tomou um copo de água e sorriu, antecipando um dos momentos mais belos do seu dia.

Foi até a caminha de sua filha, que dormia o sono dos pequeninos, sonhando com belezas e alegrias que faziam seu rostinho pálido brilhar como se uma benção fosse. O Homem se debruçou sobre a figurinha e lhe deu um delicado beijo na fronte. A Menina pareceu sorrir e seu brilho, aumentar.

Cheio daquele amor sublime, ele saiu de casa. Logo as agruras da vida diária cercaram, sorrateiras, sua mente em doce devaneio. Ele enfim se resignou, pois aquele seria mais um dia comum entre tantos. Trabalharia ele, aguentaria desaforos, receberia pequenas compensações e alguns belos presentes. Mas tudo aquilo, o que se chamava de dia, nada mais era para ele que um intervalo entre o beijo de despedida e a volta para casa, para a Menina.

Mas aquele, afinal, não seria um dia comum. Não, de forma alguma, dia menos comum seria difícil de se conceber. Pois naquele dia o Homem se despediria de sua Menina.

Esse Homem é apenas um homem comum, diriam uns. Insignificante, diriam outros cheios de empáfia e soberba. Uns poucos diriam que era um homem bom, sensível aos presentes de Deus. Um homem capaz de apreciar o risinho de uma criança ou o esvoaçar de uma bela borboleta.

Todos sabem que um homem capaz de se alegrar com o riso dos pequeninos não pode jamais ser chamado de insignificante. De fato, tal homem é a própria definição, causa e consequência da Humanidade.

E essa definição caminhava rumo ao botequim onde almoçaria um prato bem baratinho e bem servido de iscas de fígado acebolado com purê de batatas. E foi então que ele ouviu um grande estrondo.

Passando em alta velocidade um caminhão pesadamente carregado acertou um carro com violência. O motorista tinha perdido completamente o controle e o caminhão destruiu a frente do minúsculo Up, que mais parecia um patim abandonado que um carro. O motorista da carcaça a tudo assistiu, atônito e incrivelmente ileso. O caminhão seguiu derrapando e terminou por tombar bem à frente do Homem, em cima daquele grupo de crianças que ia para a escola.

As coisas aconteceram muito rápido, como relataram testemunhas posteriormente. Contaram sobre como o caminhão tombou e prendeu as pernas de uma menininha pequena. Contaram, com olhos arregalados, como o Homem titubeou apenas por um momento antes de se lançar debaixo da pesadíssima caçamba, erguendo-a com um esforço impossível. Contaram, maravilhados, como, graças ao feito milagroso daquele Homem, conseguiram puxar a menina em segurança antes dele sucumbir à terrível carga.

Mas não puderam contar, àquela altura, o tremendo embate mental que ocorreu naquele pedaço de instante em que o Homem percebeu o que ocorrera e teve que decidir o que fazer. Não perceberam os transeuntes a dúvida cruel que se abateu como um raio naquele sujeito simples. Não puderam imaginar o tamanho do sacrifício que ele aceitou quando, num átimo, deu um último adeus à sua Menininha tão amada e que nunca mais veria.

O que aquele Homem havia pensado naquela fração de segundo? Teria ele agido por compaixão, pensando que aquela menininha correndo risco de vida teria, ela também, um homem que a amava e que sonhava em encontrá-la num doce abraço ao voltar para casa de um dia duro de trabalho?

Teria ele projetado naquela pequena desconhecida sua própria Filha, e agido por instinto paterno? Teria ele agido por reflexo, sem noção alguma do que iria seguramente ocorrer?

Nunca saberemos, diriam os céticos. Seguramente teria sido por pura estupidez, diriam os cínicos, imaginando que tal Homem não conseguiria mensurar o tamanho daquela carga, que seguramente o esmagaria.

Mas a verdade é que nos grandes dias, nos momentos mais belos da gloriosa História humana, os céticos e os cínicos ficam à margem, quando não se afastam, incapazes de se deliciar com a Beleza da vontade humana.

E nem cético nem cínico pôde prever que a roda do micro carro destruído, depois de arrancada violentamente do seu eixo pelo caminhão, iria quicar num muro do outro lado da rua e rolar ladeira abaixo, na direção do caminhão.

Nenhum dos dois trouxas teria antecipado a minúscula possibilidade daquela roda resvalar no hidrante rua acima e se inclinar do jeitinho certo.

Pois o que aconteceu foi que a roda do carrinho, depois da batidinha no hidrante, terminou por se encaixar numa abertura milimetricamente precisa na lateral tombada do caminhão, exatamente no momento exato em que o Homem, exausto, desistia do esforço, em parte por ver seu objetivo conquistado e a outra menina em segurança.

Abandonando a esperança e sem ver que a salvação rolava em sua direção atrás de si, o Homem se resignou à destruição e relaxou o corpo.

Mas a caçamba não o esmagou.

Ele ouviu um alto ranger bem atrás dele e deitado no chão olhou para trás. Aturdido, viu a roda, que havia se encaixado à perfeição e estava lentamente se deformando sob o gigantesco peso da caçamba. Era possível que, tamanha sua surpresa, aquele homem, já agora Herói, tivesse assistido inerme e estupefato à sua própria morte por esmagamento.

Mas outros homens já estavam ao seu lado naquele momento, o puxando pelos ombros com cuidado e rapidez.

Assim que o Herói foi então resgatado pelos homens, a roda deu um estalido que para alguns soou como um "Ahá" e deixou-se partir finalmente.

O que se seguiu foi uma grande, ainda que ligeira, festa. A mãe que levava as crianças não largava o Herói, agradecendo e o abraçando. As demais crianças choravam de alegria e excitação.

E os homens, depois de ter tirado o Herói do sufoco, o cumprimentavam com a galhardia dos justos. Estava ali um bravo, disseram. Nunca vi tamanha rapidez e coragem, comentaram.

Mas o Herói, ainda que agradecido e confortado por tudo aquilo, só queria voltar correndo para casa. Para a sua Menina, que quase havia perdido. Para sua Menina, que tinha abandonado ainda que por só alguns segundos. Para sua Menina, da qual havia se despedido para sempre.

E foi o que ele fez. Voltou para casa correndo, e ao chegar, abraçou sua Menina num aperto que esmagou todo o medo, todo o desespero, toda a dor e todo o sofrimento do mundo.

Só sobraram ali o Homem, a Menina e o Herói.

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