Médico raiz (ou da casca grossa)

Sou de uma geração de médicos que já está envelhecendo.

Se vocês acham que a medicina está ruim, vocês não sabem de nada. Quando vejo colegas mais novos, emotivos, flanando com o "virtue signalling", ao menor contratempo médico, fico com vergonha alheia.

Assisti a AIDS assombrar como uma peste entre os jovens, dizimando centenas e centenas de pessoas.

Não sabíamos de nada, como era, como tratava, nem o que fazer.

A impressão que tínhamos é que a imunidade tinha pulado fora do corpo e, ele, o paciente virava uma banquete para todos os germes existentes.

Não lembro de nenhum colega chorando nas enfermarias ou se recusando a atender uma doença que mal sabíamos como se transmitia.

Transmissão por agulhada ou trauma - se assim fosse, eu e outros colegas estaríamos mortos.

Cortei os dedos, furei inúmeras luvas, levei dentadas e recebi todas as secreções possíveis nos olhos e às vezes na boca.

Fui fazer Pneumologia e passei a lidar com a tuberculose e a AIDS.

Tínhamos tuberculosos resistentes a todas as medicações, pacientes que muitos tinham medo de chegar perto.

Quando peguei minha tuberculose, recebi o diagnóstico, fui pegar a medicação e voltei a cuidar dos meus doentes. Tratei quieto e sem encher o saco de ninguém,

Saía da residência e ia para os plantões em UTIs nos hospitais públicos. Era medicina de guerra. Os respiradores pneumáticos - os médicos de hoje nem sabem o que é isso-, e uma falta absoluta de material.

Um amigo cirurgião sempre corria para que eu o ajudasse nas cirurgias, mesmo eu estando de plantão na UTI do hospital. Eu, um residente da Pneumologia em meio a cirurgias de baleados e das maiores complicações possíveis.

Nunca esqueço: "Vamos empacotar esse fígado". E olhava aquele órgão todo rasgado a balas.

Tínhamos um orgulho danado dos alunos no plantão. Estudavam como loucos e não se negavam a nada. Eu tinha aluno do quinto ano que fazia traqueostomia, dissecava veias, puncionava artérias, drenava tórax, entubava, passava cateter de Swan-Ganz.

Quanto maior a dificuldade, mas lutávamos. Eu vi um colega ficar horas ventilando com as mãos um paciente por não haver respirador. Era ele e uma enfermeira, revezando.

Lembro uma vez duma jovem, morrendo por sangramento pulmonar, sem condições cirúrgicas. De forma desesperada fiz uma endoscopia respiratória e joguei super-bond no local do sangramento. Ela viveu.

Vi amigos tomando atitudes heroicas de forma indiferente, pois era o que havia a fazer. Um colega abriu um tórax no corredor do hospital e por cima da maca massageava o coração a céu aberto até chegar ao Centro-Cirúrgico. O paciente viveu.

Se o doente tivesse a mínima chance de sobreviver, jamais vi um colega a negar (socorro).

Trabalhei com um grupo de residentes que tenho orgulho até hoje. Dormíamos em macas, às vezes ao lado de um doente mais grave.

Quando entrávamos nas grandes emergências, olhávamos aquele imenso caos dos hospitais do Rio, por vezes ficávamos quase um dia sem dormir. Eu vi amigo fazer arritmia de tanto tomar café e fumar.

Nessa época, quase todos fumávamos, mesmo eu, da pneumologia. Às vezes saía na porta do Hospital que estava, e olhava a quietude das ruas. Vi o dia amanhecer várias vezes sentado na porta do hospital, exausto, mas sem frescuras.

Éramos assim. E nossos chefes eram mais duros ainda. Vivíamos de esporro em esporro até que no final nossos mestres nos viam partir com os olhos marejados.

Devorávamos livros, escrevíamos artigos, livros e sem reclamar.

Um dia, incauto e exausto, fui no terceiro ano da Pneumologia reclamar ao meu chefe, o amado Prof Manoel Jansen, que estava sem tempo para estudar de tanto trabalho que tinha.

Ele olhou nos meus olhos, riu e disse:

- "Aqui não é lugar de estudar, aqui é lugar de aprender fazendo. O que você faz agora mal está escrito nos livros ainda."




Wagner Malheiros

Postar um comentário

0 Comentários

Close Menu